Ana Maria Ribas Bernardelli

Os sonhos que sonhamos – um recado aos sonhadores.

Imagem de capa: Protasov AN, Shutterstock

Os sonhos que sonhamos se apresentam em nossa cabeça com a majestade das coisas belas, das coisas que quebram a linearidade da dura rotina e enfeitam o imaginário com novas possibilidades: gastara vida da maneira mais prazerosa que cada um elegeu para si.

Normalmente, as pessoas escolhem gastar férias e finais de semana com os seus sonhos. Quem sonhou com uma casa na praia, e conseguiu realizar o sonho, vai para a praia. Quem ainda sonha com uma casa na praia, mas não conseguiu comprar o sonho, compra a temporada numa casa alugada, e continua sonhando o sonho de ter a sua, um dia. Quem sabe, o ano que vem.

Ontem, voltando de uma viagem curta, eu me deparei com um condomínio de chácaras nos arredores da minha cidade, cuja sede me pareceu suntuosa, com altas grades no entorno, segurança, e portaria 24 horas. Em outros tempos ficaria fissurada pela ideia. Agora não me faz nem cócegas.

É o tipo de empreendimento que atrai jovens casais, com filhos pequenos para gastar energia, e com sonhos intactos pedindo realização.

Sonhos intactos são sonhos virgens, sonhos jovens, sonhos não contaminados pela realização. Porque depois que um sonho se realiza, ele se contamina de tal maneira com a realidade, que facilmente vira um pesadelo.

É por isso que as imobiliárias prosperam tanto.

Porque quem realizou o sonho e viveu a metamorfose, quer se livrar do sonho realizado e das responsabilidades que ele acarreta. E quem ainda não realizou o sonho, deseja muito comprar o sonho daquele que quer vender.

Feitas as devidas apresentações o ex-sonhador entrega as chaves do sonho para o atual, e lá se vão, ambos a caminho do seu destino, enquanto a imobiliária fica no mesmo lugar, na nobre missão de livrar sonhadores antigos do seu pesadelo, entregando,em papel de seda cor de rosa, o sonho que pode ser roxo ou cinza chumbo, mas quem compra, não quer nem saber.

Assim caminha a humanidade. Tem gente que sonha sonhos sonhados no capricho.

Tenho uma amiga que mora em São Paulo. Um dia, amanheceu sonhando uma casa de veraneio no Canto da Lagoa, em Florianópolis. Para realizar o sonho, posto que a casa já existisse, ela teria que se deslocar 750 km, em direção ao sul do Brasil. Mas quem se importa com a distância, quando o sonho dorme e acorda com o sonhador? Ninguém, nem ela.

Dois anos depois, a casa foi inaugurada. Tudo imaculadamente novo, do alicerce ao telhado. Até a varanda mereceu cortinas de voil porque a minha amiga é decoradora e o sonho dela, muito caprichado, foi decorado com cortinas de voil na varanda, balançando ao vento. E ninguém tem nada com isso. Nem eu. Diga-se de passagem, acompanhei calada o parto da casa, e até fui convidada para a inauguração.

Aprendi uma coisa: não se pode abortar o sonho do outro por mais maluco que seja. Pega mal, parece azaração de gente impertinente que mete o bedelho onde não é chamada.

Mas eu já sabia o básico:

A característica da transformação do sonho em pesadelo é que o pesadelo percorre o mesmo caminho do sonho. Começa com um pensamento, que puxa o outro, que puxa o outro, uma incomodação de alma que não deveria estar presente, mas comparece sem ser convidada.

Com um agravante: no sonho, a realidade não interfere, porque a realidade não tem participação no sonho. Já o pesadelo se alimenta da realidade. O pesadelo se alimenta de cansaço, inadequação, rotina, despesas, e enfado. Sem falar no trabalhão que dá para administrar o dito cujo.

Em pouco tempo, as cortinas ficaram pretas de pó, chuva, frio, e vento. Em pouco tempo, a maresia começou a corroer os metais da casa. Em pouco tempo, as flores do jardim murcharam porque uma casa cuja dona mora a 750 km de distância, é uma casa sem dona.

Casa sem dona, se ressente. Casa sem dona é casa com vocação para a desintegração precoce. Alguns anos depois de muitas viagens e muitas dores de cabeça, minha amiga livrou-se do pesadelo: vendeu a casa para uma sobrinha.

Detalhe curioso: o caminho do sonho sempre passa do mais velho para o mais novo em idade cronológica. Macaco velho não mete a mão em cumbuca. Macaco novo se delicia e nem pensa nessa possibilidade.

Eu já tive inúmeros sonhos que viraram pesadelos. Desde sonhos recreativos, até sonhos comerciais. Mas nada me desiludiu tanto quanto o sonho de ter domicílio em outros lugares.

Nessa empreitada, eu descobri o que o Pequeno Príncipe já havia ensinado, e eu não aprendera: “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.”

Tu és eternamente responsável por aquilo pelo qual se deixou cativar.
-Comprou?
-É seu!

Cada posse adquirida representa um compromisso assumido. Ter assumido compromissos simultâneo com três domicílios, me fez ver que eu não poderia estar nem mesmo em dois deles, ao mesmo tempo. Quanto mais em três. Eu sempre tinha que estar em um único lugar.

Enquanto estivesse num lugar eu não poderia estar no outro, porque uma lei da física anunciou, antes que eu existisse, que um corpo não pode ocupar dois lugares simultaneamente. Mas eu me esqueci.
Todo mundo que deseja o segundo domicílio se esquece desse detalhe gravíssimo.

E quando lembramos, surgem os conflitos: o que eu estou fazendo aqui, se o meu lugar parece ser lá? Então, vamos para lá. E ao chegarmos lá, descobrimos uma outra lei instalada: a lei do caos que tomou posse do imóvel enquanto estávamos no outro lá.

Você sabe o que é a lei do caos?

A lei do caos prevê que, se uma casa perfeitamente limpa e decorada, for fechada por um determinado tempo, sem que ninguém a use ou retire nada do lugar, o caos se instala e faz dela a sua residência.

O resultado é catastrófico: teia de aranha, pó, sujeira, bolor, deterioração generalizada. E se a casa for à beira mar, conte com mais um agravante a favor da destruição: a maresia.

Assim sendo, fiquei profundamente aliviada quando uma transação imobiliária conseguiu me livrar do pesadelo, e alugou ou vendeu os meus destruídos sonhos para pessoas que o reconstruíram como seus novos sonhos.

Na vida, tudo tem o seu tempo. Quanto mais jovem, mais sonhos fúteis, vazios, megalomaníacos, desprovidos de realidade. Faz parte.

Hoje prefiro sonhar poucos sonhos. Talvez, um único sonho. E embora realiza-lo seja quase impossível, já sei que a não realização preserva o sonho. A tragédia do sonho começa quando ele se realiza.

A morte do sonho começa no dia em que ele nasce e se materializa. Sonhos não realizados têm o benefício da eternidade. Mas a gente não gosta de ter um sonho adiado com essa justificativa. A gente quer para ontem, o que só chega devagar e com o tempo.

Então, que venham os sonhos e que eles desabrochem na medida dos nossos desejos. Depois não diga que eu não me avisei e te avisei.

Ana Maria Ribas Bernardelli

Estudante de humanas-idades, cidadã do céu e da terra, escritora por compulsão, leitora de letras, de pontos, de reticências, e de linhas, interventora de paisagens, solitária por opção, gregária por necessidade, gosto de músicas, filmes em que só as pessoas acontecem, documentários, biografias, e todas as obras de Clarice Lispector e de Watchman Nee. Vivo a espiritualidade, sem religião. Não tenho afinidades com rituais e com scripts que se repetem. Amo a liberdade, os animais, as plantas, os velhos, as crianças, e todos os seres que se sentem estranhos no ninho. Fujo de superficialidaes, e não tolero nenhum tipo de injustiça, crueldade, ou tirania. Adoro a Deus e a ele quero servir. Escrevo para organizar a vida, para aguentar o tranco, e em cada texto meu, você me encontrará. Espero que eu também lhe encontre no meu email, no meu site, e nos meus endereços nas redes sociais. Feliz por estar com vocês!

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