André J. Gomes

Distraído, não. Estou atento ao que me interessa.

Imagem de capa: frankie’s/shutterstock

Ahh… minha Mãe, segura nossa mão. Tem dias em que só assim. Aquela moça, sabe? Aquela moça amiga nossa, aquela que namora outra mulher, deixou a casa dos pais. A mãe a expulsou. A mãe. Não foi o pai, não foi o irmão mais velho. Foi a mãe. A mãe botou a própria filha na rua.

Aqui pertinho, um sujeito com o coração cheio de ódio passou a mão numa faca e machucou de morte um cachorro sem dono, um vira-latinha. Disse que o bicho tinha mordido o gato da filha dele e então resolveu fazer vingança. A Senhora veja se pode um negócio desse, minha Mãe! Cá entre nós, o que será que essa menina, uma criança aprendendo a dar amor a um animalzinho, vai compreender da vida assistindo à fúria vingativa do pai?

Nossa Senhora! Tem coisa que deixa a gente numa tristeza só. Um amigo me conta que na cidade dele, naquelas horas em que o povo sai do trabalho de cabeça quente, uma mulher de idade reclamou no ônibus com duas moças na casa dos vinte anos: elas estavam sentadas nos assentos reservados aos mais velhos. Pois não foi que as duas, cheias de saúde e de coragem, levantaram e estapearam a velhinha?

Eu fico aqui pensando essas coisas e vem alguém me chamar a atenção. Diz que eu sou um sujeito “distraído”. Não é má pessoa, não. Ela só não sabe que eu estou atento é em outras coisas. Minha atenção é incapaz de assumir duas tarefas ao mesmo tempo. Faz o que dá. Então esse meu jeito grave de olhar o nada até parece alheamento. E é exatamente isso. Eu vivo alheio ao que não me interessa.

Ligo não. Quase sempre não dou a mínima. Mas de vez em quando aparecem os donos da verdade e, Vixe Maria, essa gente me cansa. Ô mania de achar que os outros, todos os outros, são obrigados a ter os mesmos e exatos interesses que os deles, minha Mãe!

Para esse gente, destoar é proibido, estar alheio é ofensivo. E é tão engraçado como as pessoas carecidas de atenção sejam tão afeitas a julgar as “distraídas”!

É como se elas dissessem “fulana é distraída, nunca ouve quando eu falo”. Ai, quanto drama! É que ninguém é obrigado a estar atento o tempo todo a todo mundo, sabe? Uma coisa é se distrair no trânsito, ao volante, picando cebola, manejando um moedor de carne, regendo uma orquestra, digitando os números de um código de barras, operando um apêndice, andando na corda bamba sem uma rede lá embaixo. Aí precisa se concentrar, não pode se distrair. Nessas horas tem de prestar atenção. Outra coisa diferente é o direito de cada um se ensimesmar quando pode, ficar na sua, olhar para o nada e pensar somente no que lhe interesse. Será isso pedir demais, Virgem Santa?

Confesso: sou pessoa distraída. Mas essa é só a opinião de quem não tem a minha atenção. E a minha atenção agora anda focada em tanta, tanta coisa. Penso na moça amiga que a mãe expulsou de casa. E me alegra a notícia de que uma tia dela muito atenta a acolheu com amor. Penso no cidadão sem dó que esfaqueou um cachorro da rua. E me alivia o fato de que uma boa gente se reuniu e cuidou do bichinho machucado. Penso na velhinha que apanhou no ônibus, minha Mãe, ela que podia ser a minha própria mãezinha! E me acalma saber que o motorista, o cobrador e os passageiros de bem saíram em sua defesa e agora ela vai bem, recuperando-se do susto na companhia amorosa da família.

Penso nisso tudo com atenção. É tanta coisa para pensar! Então eu penso, penso e peço. Peço sem dó: rogai por nós, minha Mãe. Rogai por nós. Tem dias em que só assim. Tem dias em que só assim…

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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André J. Gomes
Tags: Distraído

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