Imagem de capa: Linda Moon, Shutterstock

Sim, eu pertenço àquela parte geracional da população de filhos únicos. Os mimados. Os egoístas. Os que têm tudo de mão beijada. Não fui filha única por vontade dos meus pais. Aconteceu. Antes de mim, existiu um mano – que infelizmente faleceu bebé. Antes do mano, existiu ainda outra tentativa que também não chegou a ser bem-sucedida. Depois, vim eu. E creio que para quaisquer pais que queiram muito ter filhos, após passarem por algumas provações, quando percebem que a sua cria – aquela cria – vem ao mundo sã e sorridente, se agarrem a tudo e mais alguma coisa para a preservarem, a mimarem e a amarem. Fui filha única por acaso. Aconteceu. Fui a menina dos olhos deles – e, aos (quase) quarenta anos acho que ainda sou. Esta é a realidade com que fui, mais ou menos, obrigada a viver. No fundo, esta é a única realidade que sempre conheci.

Era suposto, agora, fazer uma série de considerações abonatórias pelo facto de ser filha única. Foi, também, essa a realidade que os meninos que tinham irmãos nos fizeram acreditar. «Não imaginas a sorte que tens em ter um quarto só para ti.» «Eu sou sempre o culpado das asneiras que o meu irmão faz.» «Os meus pais gostam mais dele do que gostam de mim.» Enfim! Poderia gastar, aqui, duas ou três páginas só com as coisas que nós – os filhos únicos – tivemos de ouvir. Fomos acreditando que ser filhos únicos não era uma cena fixe. Era quase como um estigma social. Era quase como se nascessemos com características diferentes dos outros meninos. Era como se, à nascença, nos escrevessem nas cédulas de nascimento que iriamos ser crianças mimadas, egoístas e que não saberíamos dar valor a nada. Fomos crescendo a tentar contornar essas características – que herdámos da sociedade – e fomos tentando refutar cada uma delas, rodeando-nos de pessoas, emprestando os nossos brinquedos e convidando os nossos amigos para dormirem no nosso quarto – que tínhamos só para nós. Talvez tivesse sido essa a melhor forma de compensarmos o facto de termos alguns privilégios que os outros meninos não tinham.

Não quero estar com falsas modéstias. Não é essa a minha pretensão. Sim, tive um quarto só para mim. Sim, é verdade que não tive de fazer cedências com mais ninguém. Pude brincar com todos os brinquedos até me fartar, pois não tinha ninguém para fazer queixinhas aos meus pais. Não sei o que é ter uma briga de irmãos, não faço ideia do que seja partilhar, todas as noites, o mesmo quarto e nem sequer imagino o que é levar um puxão de orelhas sem ter culpa nenhuma no cartório.

À parte disto tudo, sempre fui tentando contrariar este privilégio de ser filha única. Ia dizendo, para quem quisesse ouvir, que sim, que era filha única, mas preferia não o ser. Aconteceu. Mas ficava sempre com a sensação de que a maior parte das pessoas não percebia muito bem porque é que eu dizia isso – e, certamente, até ficaria a resmungar, entre dentes, o facto de me estar a queixar de barriga cheia.

Hoje, ainda mantenho a mesma opinião. Claro que já não vou a tempo de pedir um mano à minha mãe, mas sou a tia que pede às amigas que não deixem os seus filhos serem únicos e sou a mãe que gostava ter mais que um filho.

Hoje, ainda mantenho a mesma opinião. Mas, se calhar, as razões em que a fundamento são um pouco diferentes. Antes, quando me perguntavam – com ar de espanto –, afinal, porque é que eu não gostava de ser filha única, eu, prontamente, respondia – com o meu ar confiante – que, mais importante do que ter um quarto só para mim, era ter alguém para brincar nele; mais importante do que brigar era ter alguém com quem falar; mais importante do que poder comer o meu gelado preferido era ter alguém a quem dizer o quão delicioso ele era. E, assim, ia justificando – aos outros e a mim própria – a razão pela qual só era filha única por acaso. Um dia, percebi, pelas piores razões, o porquê de ter dito uma vida inteira que não queria ser filha única.

De uma filha que foi única, posso garantir-vos que mais do que ter desejado um irmão para poder partilhar as alegrias, desejei ter tido um irmão para partilhar as tristezas. A dor. Partilhar a dor. Partilhar as mesmas lágrimas, sentir o sangue do nosso sangue, ali, connosco, a atenuar-nos o sofrimento. A moderar-nos a dor. Porque, quando faltar as forças a um, faz-se uma transfusão anímica para o outro. Quando as lágrimas de um teimarem em cair, as mãos do outro servirão para as secar. Quando um precisar de descansar os olhos, o outro ficará de vigia. Podemos perder um pai, uma mãe, um avô ou uma avó, mas, enquanto tivermos um irmão ao nosso lado, a nossa outra metade continua lá. Firme. Inteira. Fui filha única por acaso. Aconteceu. Mas é sem mimo e sem egoísmo nenhum que vos digo que, melhor do que ter alguém com quem sorrir, é ter (sempre) alguém com quem chorar…

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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