Imagem de capa: nd3000, Shutterstock

Esta noite, serei tua. Só tua. Deixarei o mundo lá fora para te receber, aqui dentro. Esta noite, viveremos o nosso mundo. No nosso mundo. Preciso de me perder em ti. Por ti. Preciso de me encontrar, perdendo-me em ti. Já apaguei as luzes. Resta-nos a luz das velas – que já crepitam, loucamente, como quem adivinha o que se vai passar. Não te preocupes. Deixarei luz suficiente para te encaminhar até mim.

Pus o meu melhor vestido. Aquele que deixa adivinhar todas as formas do meu corpo. Deste corpo que, hoje, será teu. Deixei o frasco de perfume em cima da cómoda. Não será usado, esta noite. Esta noite, o único cheiro que quero a perfumar a minha pele é o teu. Quero que cada poro absorva, sofregamente, as gotas do nosso prazer. Esse é o único perfume que quero usar, esta noite. O outro — o caro — fica em cima da cómoda. Não há essência mais perfeita do que o aroma dos nossos corpos juntos. Se pudesse, era essa a essência que usava, todos os dias, para perfumar a pele. A nossa essência. Será que conseguiria fechá-la num frasquinho? Há frascos tão lindos. Vou escolher o frasco mais bonito que encontrar. Prometo-te. Aquele que melhor condiz com as nossas peles. Amanhã, começo a procurar. Levarei comigo o cheiro da noite de hoje, para ter a certeza de que tudo fica a condizer. Depois, guardá-lo-ei no lugar do outro perfume — que deixarei de usar. Aquele, que hoje deixei em cima da cómoda. Não voltarei a precisar dele. Não, enquanto existir o teu cheiro, o teu corpo, a tua essência para me perfumar.

Calcei os sapatos de salto alto. Realçam-me as pernas. Definem-me os traços. Conferem mais elegância ao andar. É assim que te vou esperar, esta noite. Não carreguei muito no batom – vermelho, claro! Que outra cor podia ser? Mas também não o deixei esbatido. Há lá vermelhos esbatidos! Vermelho é vermelho. É vida, é cor, é paixão. E há lá paixões esbatidas! Paixão é paixão. Por isso, esta noite, pintei os lábios de vermelho. Ah! E já pus o champagne no frio. Quero-o com a temperatura ideal para quando chegares. Quase que consigo sentir os teus lábios — gelados — a percorrerem-me o pescoço até encontrarem o doce dos meus lábios — que aguardarão, impacientemente, pelo sabor amadeirado que o champagne, intencionalmente, deixará na tua boca. Beberei de ti. Dos teus lábios. Da tua boca. É assim que quero desfrutar da bebida, esta noite. Através do sabor dos teus beijos.

Quando chegares, não te inibas em despir-me. Aperaltei-me porque te quero receber bem. Mas o meu melhor está por baixo destas roupas. Por isso, não te inibas em despir-me. Elas já estão à espera de abandonar o meu corpo. Já estão à espera de me deixarem a sós contigo. Esta noite, não terei vergonha. E os preconceitos também os deixei lá fora. Esta noite, só nos convidei a nós. Sem roupas. Traremos apenas as nossas imperfeições que são, precisamente, o que nos torna seres perfeitos. Não me apaixonei por uma boca, por uns olhos ou por mais um corpo. Não. Não é disso que estamos a falar. Não é mais uma boca, porra! São os teus lábios, que esperaram este tempo todo para beijarem os meus. Não são mais uns olhos. Não! São os teus olhos. Os mesmos que me olharam na alma. E o corpo? Fosse apenas mais um corpo e não me eriçava a pele desta maneira. Fosse apenas mais um corpo e não me despertava a alma com esta certeza. É o teu corpo, caramba. E foi, precisamente, por todas as tuas imperfeições que me apaixonei. Por isso, não te inibas em despir-me as roupas. Serei, imperfeitamente, tua, esta noite.

Dançamos? Não há nada mais intimo do que a intimidade de dois corpos. Quero que me guies neste ondular, esta noite. Nunca dancei totalmente nua para ninguém. Mas, esta noite, desejo, descontroladamente, ser tomada nos teus braços – fortes e robustos – e guiada pela melodia do teu respirar. Será a única música que os meus ouvidos se permitirão ouvir. Dançamos?

E, quando já não aguentarmos mais, quando já não conseguirmos obedecer às regras da sensatez, seremos insanos. Chamaremos os instintos mais básicos, os mais antigos, os mais grotescos e daremos de comer à carne – esfomeada. Saciamos-lhe a gula, a sofreguidão, o desespero. Sem maneiras. Olhos nos olhos. Como um predador que encanta a sua presa. Mataremos a fome. A fome de nós. Em nós. Depois? Depois, sucumbiremos ao cansaço dos corpos – que recuperam o respirar, lentamente. Iniciaremos uma luta desigual. Assistiremos – lado a lado – à clemência dos corpos saciados e à demência das almas insatisfeitas. E, então, iniciaremos tudo, outra vez. Mas já não mataremos a fome da carne. Saciaremos a sede da alma. E os corpos obedecerão. Com calma. Com a vagareza de quem tateia o terreno pela primeira vez; de quem desbrava, com exatidão, o caminho mais seguro, porém o mais longo; de quem aprecia mais a viagem do que o destino. E, ali, ficaremos horas, dias, anos, uma vida. Uma vida inteira…

Esta noite, fui tua. Só tua. Por agora, apagarei as luzes. Mas não te preocupes. Deixarei luz suficiente para te encaminhar até mim… No dia em que fores verdade.

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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Júlia Domingues

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