Imagem de capa: Natali Dronova, Shutterstock

Sim, ainda é amor. Mesmo nos dias em que já não te consigo ver. Mesmo quando, baixinho, só peço que me deixes sossegada porque até a tua voz me irrita. Se me dissessem que, passado este tempo todo, o amor seria assim, eu diria que o amor devia vir com férias do amor. Devíamos poder tirar férias do amor. Como fazemos no trabalho. Vamos de férias e tudo fica tão melhor. A vida volta a fazer sentido, o oxigénio regressa aos pulmões e até conseguimos começar o dia a cantar no banho – mesmo que continuemos desafinados. Mas não. Quem inventou o amor, deixou-nos com a máxima de que: «Quando se ama, ama-se para sempre». E, se não for amor, temos bom remédio. Fazemos as trouxas e rumamos a outras paragens. Bem longe dali. Ou, então, rumamos até coisa nenhuma. Pelo menos, por uns tempos porque: «Já não posso ver homens à frente». Mas e quando não é assim? E os que ficam? Os que vão ficando? Dia após dia. Um dia atrás do outro. E os que resistem? Os que se resistem?

Os que ficam começam a ter de encarar uma nova realidade. Começam a dizer odeio-te – mesmo que seja só em pensamento – com a mesma força com que dizem amo-te. Mas (ainda) é amor. Só pode ser amor. Primeiro, chega a aventura de ir viver juntos. Que excitação. Uau. Agora é que somos crescidos. Tomamos, talvez, uma das decisões mais importantes das nossas vidas até então. Vamos viver com outra pessoa que não os nossos pais, os nossos irmãos ou os nossos colegas com quem dividimos a casa nos tempos de faculdade. Não. É com a pessoa que nós escolhemos. Da nossa inteira responsabilidade. É aí que começamos a brincar, verdadeiramente, aos adultos.

A primeira grande desilusão aparece com a constatação de que não temos hábitos iguais. E os nossos hábitos vão ter de se dar bem para que isto resulte. E nós também. Primeiro, ainda arrumamos os sapatos da criatura que são atirados, todo o santo dia, para o meio do tapete da sala – acabadinho de aspirar. Quando arranjamos uma hérnia de tanto nos baixarmos para arrumar a porcaria dos sapatos, começamos a aceitar que eles até ficam bem ali. No tapete da sala. Mesmo que o tapete tenha sido acabadinho de aspirar. Depois de passarmos a fase em que insistimos em fazer as coisas à nossa maneira – e em que a criatura insiste em não ser a sua maneira —, passamos à fase de (tentar) ignorar. «Que se lixe. Eu não sou mãe dele». A seguir vem a fase da confirmação: «Porra, mas eu também vivo aqui!». E seria aqui que entraria o primeiro período de férias. «’Morzinho, vou só ali respirar, soltar quatro asneiras a todo gás e já volto, ok?».

É aqui, é nesta fase que se divide o foram felizes para sempre e o vou ser feliz para outro lado. Quando amamos odiando e quando começamos a odiar continuando a amar. Porque, mesmo que ninguém nos tenha avisado, partilhar a vida com alguém nem sempre é o que, tantas vezes, gosto de escrever. E gosto de acreditar. Não. Nem sempre os sorrisos veem connosco quando chegamos do trabalho; nem sempre compramos boa disposição quando temos de ir às compras e, muitas vezes, continuamos a procurar, desesperadamente, pela paciência que continua esgotada desde a coleção do ano passado. E, caso optemos por tirar férias do amor, corremos sérios riscos de, quando voltarmos, nem termos os sapatos no tapete da sala, nem tão-pouco a presença da criatura que os calça.

Então, percebemos que, se calhar, é isso que chamam de amor. Esse nome pomposo onde há dias que de pomposo nada tem. Se calhar, naqueles dias, em que sinto, dentro de mim, uma vontade assustadora de te virar as costas e sair pela porta fora – deixando-te a braços com uma panela de água a ferver para tu não fazeres ideia se é para fazer um chá ou para fazer arroz – e correr para os braços da minha mãe para fazer queixinhas de ti; se calhar, nesses dias, em que opto por ficar, em que opto por guardar a raiva no bolso e esperar que digas aquela piada que sabes que me desarma e que me vai obrigar a soltar aquela gargalhada estridente; se calhar, nesses dias, (ainda) é amor. Se calhar, naqueles dias, em que tirei o dia para te azucrinar o cérebro – como só as mulheres sabem fazê-lo – só porque te esqueceste de reparar que eu tinha pintado o cabelo com um tom acima do costume; se calhar, nesses dias, em que, à noite, me continuas a abraçar da mesma forma, fazendo-me sentir a mulher mais segura do mundo; se calhar, nesses dias, (ainda) é amor. Porque começo a desconfiar que o amor é mesmo assim. Um dia, amamos mais do que odiamos e, no dia a seguir, juramos que odiamos, mesmo amando.

Porque começo a desconfiar que amar é isto. É odiar ter os sapatos espalhados no meio do tapete da sala, mas ter a certeza de que continuamos a amar, perdidamente, quem os calça.

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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Júlia Domingues

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