Imagem de capa: wavebreakmedia, Shutterstock

Um grande problema nesse mundo gregário é viver a solidão por opção. Há pessoas que não gostam de companhia, e que só se sentem confortáveis em companhia da sua companhia. Não escolheram ser assim, mas algo nelas lhes impõe, desde muito cedo, o gosto de estar só e o desgosto de estar acompanhada. Algo nelas se cansa com gente falando na sua orelha. Algo nelas se encanta com o silêncio exterior que conversa com a sua voz interior.

Alguém pode ser criticado por gostar de chá, e não de café? Pois, então, é isso: quem gosta, gosta – e não sabe porque gosta. Quem não gosta, não gosta – e não sabe porque desgosta.

Viver sem companhia pode parecer opcional e estranhamente antipático, mas não é opcional e nem antipático: é um imperativo. Assim como se aceitam todos os imperativos embutidos em nossa constituição física e mental, este também deve ser aceito, sem grandes questionamentos.

A necessidade de privacidade nessas pessoas é mais acentuada do que nas demais pessoas e, quase sempre, essa necessidade vem acompanhada do sentimento de que a convivência social as obriga a ser o que, em realidade, não são.

Todas as pessoas solitárias por opção sentem o fardo de corresponder à imagem que os outros fazem dela. Há uma distorção entre a maneira como os outros a vêm e a maneira como ela se vê. Os outros a vêm com condescendência e ela se vê com rigor. Os outros a vêm de maneira generosa, e ela se vê de maneira extremamente crítica, quase impiedosa. A convivência social se torna um palco onde ela precisa atuar no papel que não corresponde ao seu interior. Isso lhe é ainda mais penoso porque o senso de observação interior a mantém afastada do mundo por uma parede que a impede de usufruir do momento gregário. Enquanto todos estão ali, de corpo, alma e espírito, o solitário está em outro lugar, um lugar onde só ele entra e essa dicotomia lhe impõe uma espécie de dupla personalidade: enquanto uma se esmera em parecer simpática, afável, feliz, a outra lhe diz: você é uma fraude, você não é essa que aparece aqui, agora, neste momento. E dessa maneira, o solitário anseia sair e voltar para a sua solidão, onde, finalmente, ele pode ser quem imagina que seja e não precisa ser o que os outros pensam que ele é.

O solitário sempre volta para ele mesmo quando o passeio gregário termina. Volta exausto, cansado, extenuado pelo sofrimento que a representação teatral lhe impôs. Porque, além do mais, o solitário não é um ator. O solitário é um expectador do imenso teatro da vida vocacionado para as dores do mistério. O solitário tem muita vocação para a dor e pouca vocação para o riso. O riso é um esgar que o papel lhe impõe. Já o choro e as lágrimas brotam com facilidade.

O solitário é um chato filosófico existencial que faz o que pode para se apresentar simpático, leve, agradável, divertido, e comum. E isso lhe cansa.

Ana Maria Ribas Bernardelli

Estudante de humanas-idades, cidadã do céu e da terra, escritora por compulsão, leitora de letras, de pontos, de reticências, e de linhas, interventora de paisagens, solitária por opção, gregária por necessidade, gosto de músicas, filmes em que só as pessoas acontecem, documentários, biografias, e todas as obras de Clarice Lispector e de Watchman Nee. Vivo a espiritualidade, sem religião. Não tenho afinidades com rituais e com scripts que se repetem. Amo a liberdade, os animais, as plantas, os velhos, as crianças, e todos os seres que se sentem estranhos no ninho. Fujo de superficialidaes, e não tolero nenhum tipo de injustiça, crueldade, ou tirania. Adoro a Deus e a ele quero servir. Escrevo para organizar a vida, para aguentar o tranco, e em cada texto meu, você me encontrará. Espero que eu também lhe encontre no meu email, no meu site, e nos meus endereços nas redes sociais. Feliz por estar com vocês!

View Comments

Share
Published by
Ana Maria Ribas Bernardelli

Recent Posts

Falecido Agnaldo Rayol emocionou vizinhos ao cantar ‘Ave Maria’ da varanda durante pandemia; assista

Nesta segunda-feira (4), o Brasil se despede de Agnaldo Rayol, que faleceu aos 86 anos…

19 horas ago

Última apresentação de Agnaldo Rayol foi eternizada em vídeo; lúcido com voz potente

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais marcantes da música brasileira, faleceu na madrugada…

19 horas ago

“Cozinharam nosso cachorro”: tutor denuncia negligência em pet shop após perder cadelinha

A perda de Filó, uma cadela da raça bulldog francês de cerca de dois anos,…

3 dias ago

Chefe explica “teste da xícara de café”, método decisivo usado em entrevistas de emprego

No competitivo mercado de trabalho, a preparação para entrevistas de emprego costuma envolver currículos impecáveis…

3 dias ago

Você sabia que dormir abraçado ao travesseiro pode indicar sua personalidade?

Você já parou para pensar no motivo de dormir abraçado ao travesseiro? Esse hábito comum…

4 dias ago

Filme da Netflix retrata a luta de uma mãe e vai te emocionar com uma dose de esperança

O cinema consegue traduzir sentimentos e vivências que, muitas vezes, vão além das palavras. No…

4 dias ago