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Tínhamos tudo para dar errado

Imagem de capa: bikeriderlondon, Shutterstock

Conhecemo-nos há 20 anos. Com 20 anos. Conhecemo-nos no vigor da juventude, onde tudo tinha uma força incalculável e onde a regra era: «querer é poder». E nós, há 20 anos, quisemo-nos como ninguém.

Hoje, com a distância higiénica necessária, posso afirmar, com toda a certeza, que te quis de uma forma assolapada. Sem regras. Sem eira, nem beira. Ainda sinto, nas veias, a ressaca do que foi querer-te naquela altura. E, como em todos os «quereres» dessa intensidade, o nosso amor tinha tudo para dar errado. Eu, uma miúda de 20 anos, a viver, impulsivamente, cada gota que a vida académica jorrava; cada segundo que era sinónimo de «querer o mundo para ontem». Tu, um menino-homem, que precisava de se formar para ter ao seu alcance todas as ferramentas para, futuramente, ser alguém bem-sucedido. Eu queria viver. Tu querias crescer. Juntos quisemos por à prova um dos provérbios mais antigos de que há memória: «Os opostos atraem-se».

Os nossos opostos atraíram-se de forma insana. De uma insanidade que só se tem aos 20 anos. Que outro nome se dá, que não insanidade, a quem sai de casa, após o jantar, dizendo aos pais: «Vou só beber um café. Volto já.» e volta três dias depois? Pegar no carro e só parar no meio do Alentejo profundo era tão fácil nessa altura. Éramos invencíveis. Nada nos detinha. Uma conversa mal terminada, à hora de almoço, foi motivo suficiente para pegar no carro e desaparecer, durante três dias, envergando apenas a roupa que tinha no corpo. Se era no Alentejo que estavas, era no Alentejo que fazia sentido eu estar. E assim foi. Ainda tive a decência de telefonar aos meus pais, na manhã seguinte, para informar que não havia sido alvo de nenhum rapto, que ficassem descansados. Que outro nome se dá, que não insanidade, quando, no próprio dia de anos, se deixa o grupo de amigos pendurado com um bolo, só porque se recebeu uma chamada, onde a voz do outro lado da linha denotava vontade de fazer as pazes?

Tudo era sentido de forma exagerada. Aos 20 anos, desconfio que só sabemos sentir assim. E foi no sentir que também me marcaste. Foste responsável por teres a primazia do toque. Contigo descobri que a pele também se arrepia por dentro, que os gemidos podem ser dados em surdina e que se pode fazer amor em qualquer lado. Sim. Aos 20 anos, temos urgência em fazer amor. Urgência em termo-nos, ali, no meio da estrada, a caminho do Alentejo, ou entre dois carros, à saída de uma discoteca.

Mas, aos 20 anos, os namoros também nunca acabam de forma serena. O nosso não foi exceção. Odiei-te. Odiei-te com a mesma força com que te amei. Odiei-te para sempre, porque me tinha jurado que também era para sempre que te amaria. Separámo-nos. Separámo-nos, essencialmente, porque eu continuei a querer viver e tu a querer crescer. E isso só foi possível fazendo caminhos separados. E, assim, as nossas vidas não se voltaram a cruzar. Depois disso, eu acabei, inevitavelmente, por crescer e tu acabaste por querer viver.

Depois de alguns escassos contactos, durante estes anos todos, hoje voltei a reencontrar-te. Tropecei em ti, por acaso, na net. Vinte anos depois. E, 20 anos depois, a urgência voltou. Não aquela mesma urgência de pegar no carro e desaparecer durante três dias. Não. Vinte anos depois, eu já vivi e tu já cresceste. É uma urgência diferente. É uma urgência em confirmar que, mesmo tendo tudo para dar errado, os amores aos 20 anos nunca são um erro. São um marco. Os amores aos 20 anos tatuam-nos a pele por dentro. É possível sentir do que somos feitos. E, quando assim é, as regras voltam a ficar lá atrás. Voltamos a usar o «Querer é poder». Já não nos teremos, no meio da estrada, a caminho do Alentejo; já não faremos amor entre dois carros, à saída da discoteca, mas, 20 anos depois, vamos poder selar esta história com um sorriso e confirmar porque é que, às vezes, «os opostos se atraem».

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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