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Posso demorar-me em ti?

Imagem de capa: Sveta Yaroshuk, Shutterstock

Posso demorar-me em ti? Posso desfazer as malas? Aquelas que trago sempre prontas – de há algum tempo a esta parte – para usar em caso de emergência? Aquelas que trago sempre prontas quando um de nós já não quer ficar. O amor anda desconfiado. Desconfiado de nós. Há sempre alguém que vem sem vontade de ficar. Há sempre um de nós que vem com vontade de ir. Tornámos o amor desconfiado. E desconfiamos do amor. Posso demorar-me em ti? Pousar estas malas que já me pesam? Pesam-me na vida. Quero arrumá-las e deixar de saber onde as guardei – como aquelas coisas que queremos guardar tão bem, que acabamos por lhes perder o rasto. É isso que quero fazer com estas malas que já me vão pesando. Não as quero ter sempre a um canto do quarto, prontas para seguirem para mais uma viagem. É isso que fazemos. É isso que fazemos, cada vez mais. Pegamos na vida, guardamo-la à pressa naquelas malas que ainda não estão desfeitas e seguimos viagem. Percorremos caminhos mais ou menos íngremes, mais ou menos sinuosos e lá vamos nós. Porque há sempre um de nós que não quer ficar. Que veio com vontade de ir. Andamos desconfiados do amor. E tornámos o amor desconfiado. Tenho cá para mim que andamos a inverter a prioridade do sentir. Não devíamos chegar à vida de alguém com vontade de ficar para sempre? Não é essa a ordem natural das coisas? Então, porque chegamos já com a intenção de não ficar? Chegamos desconfiados. Desconfiados da outra pessoa. Do amor da outra pessoa. Vamos ficando, muitas vezes, à procura de motivos para ir. — Não estou para isto. Não estamos e não ficamos. O problema do amor adulto, consciente; o problema do amor que surge no meio de tantos desamores, é que vem sobrecarregado com todos os códigos de um passado. E nós – os adultos – não temos paciência, nem tempo para desencriptar esses códigos. Queremos um amor adulto de chave na mão. Pronto a usar. Limpo e areado. Talvez seja esse o motivo pelo qual não nos demoramos no amor, nos dias de hoje. Porque não queremos andar a fazer as limpezas do que os outros sujaram. Não queremos ficar carregados de pó. Do pó de um qualquer passado, que não nos pertence. Do pó que deixa o amor empoeirado. Que torna o amor turvo. Que deixa o amor baço.

E nós, os adultos — talvez porque não nos reste muitos mais panos de limpeza nas nossas malas, nas nossas vidas; talvez porque não tenhamos tanto tempo para as fazer —, vamos chegando com vontade de ir. Não nos demoramos. Satisfazemos o corpo sem procurar satisfazer a alma. Mas uma coisa tenho como certa. Pode não me restar mais nada. Posso não ter forças para muito mais. Mas resta-me a última e derradeira vontade. A de amar. Resta-me a vontade de arrumar as malas para um canto qualquer e esquecê-las, de tanto ocupar o pensamento em amar-te. Em amar-nos. Em manter um amor limpo e arejado. Em deixar o passado no passado e fazer do presente, do nosso presente, o futuro mais desejado. Em ter a certeza de que vieste para ficar e não chegaste com vontade de ir. Porque mais importante do que querer gostar é a certeza de que se quer ficar. Mais importante de dizer que se ama é amar para se poder dizer. Posso demorar-me em ti? Ficar. Fazer o café da manhã e deixar que aquele cheirinho a café fresco nos invada a vida. Deixar a cama desfeita com a certeza de que, mais logo, ela será a testemunha mais fiel do nosso querer. Não me procures no passado, quando o que te quero dar são os dias que me restam do meu futuro. Não me procures nos desamores. Nos outros. Nos que já lá vão. Procura-me nos meus olhos. Na minha pele. No meu cheiro. No meu desejo. São eles que te darão as respostas de que precisas para quereres ficar. Para teres chegado sem vontade nenhuma de ir. Não tenhas pressa de amar. Tem pressa de voltar a sentir. Não desconfies do amor. Porque o amor é feito, precisamente, para se confiar. Desta vez, posso demorar-me em ti? Vou desfazer as malas. Não me apetece andar sempre preocupada em perceber se vieste para ficar ou se tens passagem marcada para o dia a seguir. A cama continua desfeita. Vens?

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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