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O texto que não quero escrever

Imagem de capa: Natali Dronova, Shutterstock

Este é o texto que não quero escrever. Este é o texto de que tenho fugido. Que tenho evitado. Este é o texto que insiste em não sair. É um texto em tom embargado. Já escrevi sobre (quase) tudo. E ainda tenho tanto para escrever. Já escrevi sobre amores e já confessei desamores. Já sonhei de olhos abertos – enquanto escrevia – e já fechei os olhos para viajar nos sonhos que, idilicamente, descrevi. Já cumpri o que, muitas vezes, escrevi e já me prometi que iria cumprir, fielmente, o que ainda hei de escrever.

Escrevo, essencialmente, sobre a vida. A minha vida que, afinal, é a vida de tantos nós. Revemo-nos em palavras. Reconhecemo-nos em sentimentos que, não sendo nossos, nos assentam tão bem. Escrevo, essencialmente, sobre sentir. E escrevo porque existem dias em que esse sentir, aquele sentir sobre o qual escrevo, não me cabe mais no peito. E é nesses dias que o meu peito transborda. E se eu tenho andado com o peito a transbordar! Num misto de angústia e gratidão, num limbo entre o medo e a felicidade, de todas as palavras que já escrevi, de todas as palavras que já me transbordaram do peito, estas estão, provavelmente, entre as que mais me custam escrever.

— Estás tão crescida, mãe!

Digo-te isto, mãe, não com o mesmo orgulho que uma mãe diz a um filho quando repara que a sua cria está pronta para abandonar o ninho. Não, mãe. Estás crescida! Estás crescida demais! E as mães não deviam crescer demais.

Acredito que não haja orgulho maior do que o de uma mãe sentir que a sua missão como progenitora foi cumprida. Bem cumprida. Tal como sei, mãe, que te sentes orgulhosa cada vez que me vês dobrar uma camisola – depois de devidamente lavada e passada – tal e qual da maneira como me ensinaste. Sei o quanto ficas orgulhosa quando sabes que, mesmo existindo mil e uma maneiras de dobrar uma camisola, escolhi a tua maneira e que, agora, é também a minha maneira. Foi dessa forma que aprendi e será essa a forma que irei ensinar aos meus filhos – e comigo ficará sempre a esperança de que seja essa a forma dos meus filhos ensinarem os meus netos. Nós – filhos – passamos mais de metade da vida a resmungar, entre dentes, com vocês – mães – por serem tão chatinhas com os ensinamentos que temos de levar para a vida.

«Não é assim que se faz.» «Não foi assim que te ensinei.» «Leva um casaco, senão vais-te constipar.». Nunca iremos perceber como é que conseguem estar sempre «com um olho no burro e outro no cigano» e como é que conseguem estar sempre em cima daquilo que fazemos. Que chatice! Poucas foram as vezes que conseguimos aldrabar as tarefas que as mães nos davam para cumprir. E assim lá fomos caminhando. Nós, os filhos, nem sempre com a melhor das disposições para vos aturar – a vocês e às vossas malditas tarefas e ensinamentos – e vós, mães, sempre com a esperança de que um dia nos faríamos grandes homens e grandes mulheres.

Se é verdade que os filhos serão sempre bebés para as suas mães, não é menos verdade que as mães nunca serão crescidas demais para os seus filhos. As mães nunca serão velhas. Ou, pelo menos, velhas demais ao ponto de deixarem de cumprir com as quatrocentas tarefas de mãe. Mas a dura realidade é que as mães crescem. Crescem demais. Crescem muito e a partir de uma certa altura – que não sei precisar qual – crescem muito e depressa. Às vezes, não reparamos. Na maioria das vezes, acho que não queremos reparar. Mas, em momentos de luta com a lucidez, verificamos que os papeis se começam a inverter. Gradual e irreversivelmente, começamos a constactar que, infelizmente, as mães (e pais) crescem. Crescem tanto que começam a decrescer.

E, agora, vem a nossa vez de dizer: «Oh, mãe, isto não está bem feito!» «Mãe, não foi assim que me ensinaste!» «Mãe, isto ainda não está pronto?» E depois de andarmos mais de metade da vida a resmungar, entre dentes, por sermos postos à prova, agora, é a nossa vez de as ouvir resmungar – pouquíssimas vezes – por exigirmos demais delas. Porque é isso que fazemos. Exigimos que o tempo não passe. Que não passe assim tão depressa. Que nos mantenha as mães sempre lindas e cheias de energia para que nos continuem a fazer as coisas, para que continuem a dispor do seu colo para nos podermos aninhar e que continuem a ter a palavra assertiva que precisamos de ouvir. Exigimos, exigimos e continuamo-nos a achar no direito de exigir. Afinal de contas, as mães são eternas, não são? Deveriam ser, mas, infelizmente, não são.

As mães crescidas começam a precisar de nós. Começam a precisar que, desta vez, sejamos nós a dispor do nosso colo – que tantas vezes continua indisponível. Estamos ocupados demais a por em prática os ensinamentos que levamos para a vida e continuamos a resmungar, entre dentes. E contra mim falo. Sei que não fui, nem sou má filha, mas sei que peco. Peco, essencialmente, por ter sempre como garantida a tua presença, mãe. Peco, sobretudo, por te exigir que continues a ser exemplar, sem falhas e sem queixas no teu papel de mãe. Peco, mais do que nunca, sempre que resmungo, entre dentes, pelo facto de não teres pronto aquilo que acho que «tens a obrigação» de adivinhar. Porque sempre foi assim, lembras-te? Sabias sempre o que me apetecia comer, o que queria pelo natal, os medos que tinha. Sempre foi assim. E nós – os filhos – achamos que vai ser assim para sempre. E lá estão vocês. Sempre. Nunca reclamam, entre dentes, como nós. A vossa forma de reclamar é pelo olhar. Quando ficam com um olhar triste pelas demasiadas exigências que continuamos a fazer. Tantas que nem reparamos. Estamos ocupados em seguir com a nossa vida. Porque esta é a nossa altura de viver. De aproveitar a vida.

Mas aproveitar a vida não passará também por te aproveitar a ti? Vida da minha vida. Vida que me deu vida. Aproveitar-te assim. Apreciar-te cada ruga, cada esquecimento, cada falha de memória, cada minuto, cada segundo. Aceitar que também cresces e que eu – filha – devia crescer mais um bocadinho para perceber que, enquanto nos tivermos uma à outra, mesmo a resmungar, entre dentes, iremos ser sempre completas. Inteiras. Felizes.

Estás tão crescida, mãe. E sabes porque é que, por vezes, me custa ver isso? Porque para mim continuas a ser perfeita. E a perfeição não tem defeitos.

Obrigada, mãe, por, tantas vezes, parares o teu (de)crescimento, por lutares contra o tempo e contra as rugas, para que eu continue a sentir-me sempre pequenina.

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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