Envolvida pela leitura do ótimo “Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite”, de Fal Azevedo, revisito as cenas de minha vida, as de ontem e as de hoje, e percebo o quanto os retalhos se entrelaçam, mostrando que o tempo passa e se repete, flui e permanece, conduz e é envolvido, avança e recua.

Nenhum dia termina, nenhuma história de hoje existe sozinha sem os vapores de ontem, nenhuma escolha ficará impune ao amanhã.

Somos a continuação dos planos, a evolução dos desejos, o prosseguimento das primeiras histórias.

Encostada no muro da casa da minha avó, aos oito anos, eu tecia meu primeiro diário. Nele exercitava meu desejo de fazer-me palavra escrita, e nenhum dia terminou desde aquela tarde. Hoje, em frente ao computador, dou continuidade às linhas da menina, alterando os versos, modificando a musicalidade, mas carregando em mim toda prosa dos primeiros atos.

Somos a soma dos dias; a língua queimada no primeiro gole de café quente, a embriaguez perfumada do primeiro porre, o hálito seco ao encontrar o grande amor da adolescência. Somos os quintais onde brincamos, as casas onde moramos, os beijos que ofertamos, as músicas que ouvimos, as goiabeiras que subimos, as emoções que provocamos.

Nenhum dia termina. Mesmo desbotados, não morrem os sonhos ou as ilusões. Mesmo atrasados, não morrem os risos nem as canções. Mesmo distantes, não morrem os sentidos ou as sensações.

Carregamos conosco retalhos do que fomos, fragmentos de um tempo em que a mãe batia um bolo e, equilibrando-nos em cima de uma cadeira alta, invadíamos a massa com nossos dedinhos atrevidos. Hoje, nossos filhos repetem o gesto como herdeiros de nossa memória e afetividade.

A gente diz “boa noite”, mas os dias não vão embora. Permanecem vivos nos pijamas das crianças, nos vapores da chaleira, no cheiro aconchegante dos biscoitos na assadeira. Na voz delicada de Chico Buarque cantando “João e Maria”, no livro antigo ofertado ao filho mais velho, na receita repetida pela moça recém casada, na porcelana herdada, nas escolhas que carregam partes do que fomos.

Enquanto coloco na máquina de lavar as sensações ruins que também fazem parte do que sou, estendo no varal ao sol minhas promessas, meus desejos de menina, meus encontros e desencontros pela vida. E assim também percebo que tudo faz sentido, nenhuma peça está ali por acaso, e por isso sou grata aos dissabores também. Entendendo que somos continuação, sequência, consequência e conclusão. Somos a soma dos dias, a constatação única de que nenhum dia termina

Imagem de capa: gornostay / Shutterstock

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Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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  • Fabíola Simões, você tem uma emoção ímpar. E engraçado é como seus textos são tão meus, tão minha vida, tão meus sentimentos, quando leio parece que vejo-me em cada frase!! Você me emociona... Parabéns pelos textos e espero que nunca pare de dividí-los conosco!

    • Querida Fabrícia, sua mensagem me encheu de emoção! Obrigada pela visita e pela docilidade! Espero que fique sempre por perto! Beijos!

  • Fabíola, seus textos dispensam autoria, afinal, VC se faz presente em cada frase. Sou sua fã, apaixonada e bêbada por seus textos - Todos eles!

  • olá Fabíola, acompanho seu blog a um bom tempo, acredito que a prática leva a perfeição e tenho visto que cada vez mais você tem aperfeiçoado o seu dom de transformar sentimentos em palavras, fico maravilhavada com a complexidade de seus textos. Também arrisco algumas palavras de vez em quando, só para os amigos. Percebo que você obviamente lê muito, pois sempre cita algum livro como no texto acima, e se você tiver um tempinho de me responder, gostaria de saber se você tem alguma técnica para aperfeiçoar a escrita, o que você faz para escrever cada vez melhor...? bjs

    • Olá Caren! Obrigada pela visita e leitura! Realmente eu gosto muito de ler, e isso me ajuda a escrever. Eu me esforço para escrever cada vez melhor, não sei se consigo, rs! Mas o segredo é transmitir o que você sente, buscando brincar com as palavras e usando recursos que levem o leitor a se identificar. Grande beijo!

  • Este texto Se parece com OS teus. Alguém escreveu em sua cronologia e Disse que Ela mesma escreveu. Mas no meu olhar parece com OS teus. Vc lembra deles? Ou ao menos Uma parte?

    Sabe aquele momento em que, por mais que tentamos controlar, as lágrimas saem por si...
    Se calhar é a fadiga de todos os momentos que fomos obrigados a ser fortes... Na verdade viemos de longos caminhos de "está tudo bem" quando na verdade a alma gritava por socorro....
    Viemos de longos caminhos de espinhos, quedas, torturas, e completamente obrigados a continuar de cabeça erguida.
    A motivação em estar calado nunca foi o medo de ser taxado de fraco, sempre foi o " melhor não incomodar"
    Não faltou desejo, não faltou vontade de rasgar a alma e implorar por ajuda, no fundo achamos que sempre "estava melhor assim"...
    Doeu, feriu, magoou fundo, mas o bom é que nunca foi necessário explicar pra alguém e esperar um "eu te avisei"
    Chegou um momento em que a pressão foi tanta que caímos literalmente aos pés do pai, e entre soluços e lágrimas, só saíram palavras inacabadas, sonhos sem expressão, e o "faça sua vontade" do mais profundo da alma, sem ter mais vontade de ter certeza de alguma coisa, corremos e nos confortamos naquele que sempre esteve aí... Interesse?? Ingratidão??? R: Não..!! Era mesmo o nosso momento...
    Foram e são esses momentos que nos tornaram mais "pés no chão", com alvos mais definidos e todos voltados a um só objetivo, são nesses momentos em que já nem sabíamos direito quem éramos que nos tornamos "alguma coisa"
    aqui sim.... conseguimos "ser"(ser dependentes, ser moldados, e ser... em Deus)....
    Mas, que o "ser" alguma coisa, não seja jamais nosso foco... pois, a luta para alcançar pode nos custar nosso próprio carácter... que nosso único desejo seja simplesmente "Existir em Deus"
    E ainda que não parecer... nele sim...!!! Temos garantia de alguma coisa....??

    • Oi Kenia! Esse texto não é meu, e não encontrei semelhança com os meus... Obrigada pela visita! Beijos!

  • Seus textos são tão transparentes, que me incluo neles.
    Obrigada por dar palavras às minhas emoções.

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