Categories: André J. Gomes

E a gente ainda pergunta por que o mundo vai mal.

Imagem de capa: inspired_by_the_light, Shutterstock

Dia desses, eu quase presenciei um atropelamento. Um senhor atravessava a rua na faixa de pedestres, duas sacolinhas do mercado nas mãos, o farol recém-fechado para os veículos motorizados, e um motoqueiro avançou entre dois carros, ignorando o sinal vermelho. O velhinho, decerto um ninja aposentado, deu um passo rápido para trás num reflexo espetacular e só por isso a moto não o atingiu em cheio. Seguiu acelerando impune, para chegar mais cedo sabe Deus aonde.

O detalhe é que a moto não era do tipo popular, de preço acessível a todos. Era uma motocicleta de corrida, sabe? Dessas que o piloto conduz abaixado e que fazem um barulho ensurdecedor. E sobre ela não havia um entregador de comida. Havia um casal passeando a toda velocidade, nem aí para as leis do trânsito.

Outro dia alguém disse que o ser humano está em extinção e uma tropa de faladores ferozes se levantou para acusá-lo de catastrofista, vitimista, mimimista e outros insultos.

Mas será mesmo catastrofismo, vitimismo e mimimi observar o óbvio, que tem muita, mas muita gente jogando no ralo as melhores possibilidades da nossa espécie?

Será que um sujeito que assusta, fere, tortura e mata o outro sem compaixão já não extinguiu em si mesmo o mínimo de humanidade que lhe restava?

Será que o cinismo de um político que tira dinheiro dos serviços públicos, da saúde, da educação e da segurança só para manter os privilégios de seus pares não é um sinal de que em seu coração já não restam sequer migalhas de solidariedade humana?

Enquanto milhares de pessoas sofrem de fome, doença e ignorância, um chefe de estado se ocupa de abastecer com comida cara seu gabinete e seu avião. Deputados e senadores assoviam, fazem cara de paisagem e empurram com barrigas enormes os projetos de reforma política que, se conduzidos da maneira certa, demolirão uma montanha de mamatas, reduzirão o número de deputados e senadores por estado e economizarão bilhões de reais por ano, dinheiro que bem gerido pode tirar tanta gente da rua, do crime, da miséria, do desespero.

Mas não. Eles preferem “corrigir” os próprios salários com argumentos técnicos rasteiríssimos, como acompanhar as variações da inflação, a mesma inflação que obriga milhões de pessoas a escolher se a sua única refeição diária vai ser no almoço ou no jantar.

Será mesmo que essa indiferença não quer dizer nem de longe que os seres humanos estão acabando uns com os outros aos pouquinhos?

Você já viu estatísticas medonhas dando conta de absurdos como o fato de que 1% dos homens mais ricos do planeta detém coisa de 40% do patrimônio mundial? Pesquise por aí! As três pessoas físicas com o maior saldo bancário da Terra têm um patrimônio superior ao das 48 nações mais pobres do mundo somadas!

E será mesmo que essas três pessoas especiais, assim como os milhares e milhares de bilionários com fortunas menores, mas que ainda assim ajudariam países inteiros a viver melhor, será que eles estão só um pouquinho assim preocupados com as consequências da desigualdade e da concentração de renda?

Entre essas consequências, é claro que não falta gente achando que destruir o outro é o único jeito de sobreviver.
Ao mesmo tempo, sobram teorias vagabundas de tão superficiais, generalizando covardemente ao afirmar que toda pessoa pobre só é pobre por culpa dela. Porque não se esforçou como devia, não levantou mais cedo para trabalhar.

Que mentira! É claro que por aí tem gente que não quer nada com nada, em todas as classes sociais. Mas há também uma multidão de operários, agentes da limpeza pública, trabalhadores braçais, pedreiros, pintores, empregadas domésticas, eletricistas, motoristas de ônibus e tantos outros profissionais que a vida inteira levantaram cedo, a vida inteira se esforçaram como deviam, sim, porque afinal alguém precisa fazer esse trabalho, e ainda assim sempre serão pobres. Honestos, trabalhadores, cumpridores de suas obrigações. Mas pobres! Muitos deles esperando ganhar na loteria para serem ricos.
Muitos deles engolidos pela ignorância absoluta e a incapacidade de pensar. Porque, você sabe, para os que concentram dinheiro e poder não é interessante que aqueles que não têm nem um nem outro sejam educados, esclarecidos, cidadãos no franco exercício de sua inteligência.

É mais útil que sejam muito pobres para outros serem muito ricos. É melhor que se reduzam à sua insignificância eterna, disfarçada de um protagonismo falso só de dois em dois anos, às vésperas das eleições.

Ao mesmo tempo, a cada nova eleição, a gente sonha que tudo vai melhorar, que a reforma política vai fazer sobrar dinheiro para mudar a vida de todo mundo. A gente acredita que enfim vai ter casa, carro do ano, viagem pra fora. Como se isso fosse condição indispensável de felicidade e, sobretudo como se isso fosse cair do céu.

Aí as eleições passam, nada muda, a gente se frustra, se magoa e volta com mais força ainda a odiar uns aos outros. E a se ferir, a se matar, a se atropelar na faixa de pedestres.

Não será tudo isso um sinal da progressiva extinção dos valores que deveriam compor o ser humano?

Em algum momento a gente acreditou que os pouquíssimos políticos honestos que realmente existem serão capazes de fazer uma transformação que deve, necessariamente, começar aqui dentro de cada um de nós. Pensando, reformulando, superando perdas, descartando o que não serve mais, abrindo espaço para o novo. E talvez deixando de acreditar nessa balela segundo a qual é preciso ter mais dinheiro do que o outro para ter o mínimo de felicidade.

Eu não quero muito, não. Mas o pouquinho que me interessa eu quero de verdade. Eu quero bem.

Sei lá. Eu só acho que tem muita gente querendo tudo e pouca gente querendo bem. Poucas pessoas querendo bem umas às outras.

E a gente ainda se pergunta por que o mundo vai mal. E se é mesmo verdade que o ser humano anda fazendo de tudo pela extinção da sua espécie. A gente ainda se pergunta por quê.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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André J. Gomes

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