De repente, assim sem mais, quando tudo caminha em seu ritmo, quando sua rotina se acostuma a repetir obediente o percurso casa-trabalho-casa em modo automático, enquanto seus planos e sonhos finalmente parecem ter aprendido a viver em paz com a realidade de todo dia, então vem a vida e lhe bate na cara como quem diz: “acorda, acorda que um dia você vai morrer!”
Pois cá estou agora, senhor absoluto das dezoito horas diárias de trabalho, tão orgulhoso de sua capacidade de produção, tão convencido de sua saúde de ferro, aqui estou eu, de cama, completa e vergonhosamente vencido pela náusea e a tontura do que parece ser uma crise de labirintite, batucando à força no telefone celular o que é preciso dizer com urgência.
Tomara Deus seja só isso mesmo. Só uma doença de ocasião, um puxão de orelha, uma advertência. Porque, de todos os medrosos que há no mundo, confesso ser o mais maricas. Tenho medo, sim. Pior: tenho pavor do inevitável.
Por outro lado, ficar doente é dessas chances que a vida nos dá de “fazer a coisa certa”, e o certo agora é reconhecer: a vida é tão breve e a gente ainda insiste em viver no conflito. Perde tanto tempo com disputas bobocas, corridas inúteis, tentativas de provar o quanto somos isso e aquilo. E no fundo ninguém sabe o que virá no segundo seguinte.
Ontem à noitinha a vida me deu uma rasteira. Do nada, estremeci de zonzeira e caí doente. Bons amigos me estenderam a mão e me ajudaram a chegar até onde estou. Esta cama e este oceano de lembranças.
Para mim, lembrar é um remédio doce em dias de cama. Mas uma lembrança boa é sempre uma armadilha perigosa. Um buraco sem fundo, um sumidouro. Sou dessas pessoas que de quando em vez desaparecem em seu lá dentro. Vão de repente. Do nada. Afundam e se perdem em seu universo interior.
Impossível trazer essas pessoas de volta à superfície no tempo em que queremos. Você joga cordas, lança redes, manda equipes de resgate. Nada. Elas só voltam ao convívio social no tempo de sua vontade, quando quiserem e puderem.
A todo convite formal, informal, direto, insinuado, respondem com um vago movimento de cabeça, um aceno, um olhar para o nada, como quem diz “não, hoje não vou sair, obrigado. Vou ficar aqui dentro de mim mesmo.” Eu sou dessa gente que se sente assim. E que tem a sorte de contar com a mão estendida das pessoas certas, na hora certa.
Você há de me perdoar a conversa aborrecida. Mas eu preciso dizer que tenho medo e ao mesmo tempo gratidão. Nesses dias de “salve-se quem puder”, me faz bem acrescentar um desajeitado “amar” ao fim da frase.
E assim, com cada um cuidando de si e dos seus, quem sabe um dia seremos todos “os nossos”, tratando juntos de suas feridas, resgatando lembranças azuis de dentro de seus dias cinzas. Vivendo com amor e saúde nossos dias de doença e dor. Porque, você sabe, viver é só o que nos sobra até que um dia isso tudo nos falte.
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