Acho que matei um poema agora. Estava cansada. Queria dormir. Me livrar desse peso que é falta de assunto na internet. Descansar. Desliguei o computador sem nem mesmo olhar para trás. Sem nenhuma pena do que poderia nascer de mim num piscar de olhos assim. E cá teria um novo texto. Novas linhas acolchoadas a acomodar egos alheios. Corações e entranhas. Mas não. Fui má e cruel e joguei água fervendo no vaso da minha própria planta. Interrompi o processo que poderia trazer novos horizontes. Inclinados. Tracejados. Meio mal feitos. Porque dei, de uns tempos pra cá, de escrever como quem faz bolo com pressa, achando que já sabe a receita. Sabe nada. Tudo que eu sabia de cor acabou perdendo a cor e eis que eu tenho um bolo solado mais uma vez. Mais uma frase pela metade. Mais um engano. Mais um descaso. A deusa da inspiração me sorri de lado querendo oferendas. Querendo encomendas e um pouco de consideração. Eu rio pra ela. E isso é sacrilégio. Eu ando pelas encruzilhadas e mexo na farofa e no espelho. Futuco o que a tigela traz dentro. Derramo o líquido da garrafa pra fora. E ela não se aborrece. Ela me olha inteira procurando motivo de tanto atrevimento. De tanta ousadia. Menina malcriada e mimada por maravilhas que sempre se fizeram estar. País de cortesias. Talvez mentiras.
Eu que sei da minha dor e não me aborreço ao bordá-la em seu bastidor que de quebrado me cansa o braço. O olhar e o laço. Eu não te encanto mais. Não te adesivo. Não te recebo direito. Invento todo tipo de fermento pra crescer nossa distância. Pra me afastar. Sinto-me tão sozinha. Do mesmo jeitinho de como era antes, onde a solidão era festa noite adentro pras minhas palavras agora tortas cá fora. Filhotes e estranhas no ninho. Meu paradoxo preferido: a solidão que traz folia. Estrago momentaneamente poético. Crimes de amor. Porque se mata um coração, mas não se perde a rima. Lema de escritor envolvido que adora sofrimento pra compor. E perder-se um tempo daqueles na vida. Vai viver. Vai ver filho crescer. Vai escrever sobre o resto da gente que é o que mais importa. Larga um pouco sua dor de menino errante, abandonado ainda pequeno embaixo da escada. Dá valor pra tua carne. Bota ela no mercado. Colorido. Já que negro nunca foi sua cor. Vai ser feliz do jeito que for, liberto das escravas-palavras-malvadas e guias. Vai viver sua própria fantasia onde nossa deusa senta-se à mesa e anda com pé no chão como toda gente, ainda que de vez em quando você veja um lampejo de brilhante saindo bem de dentro dos olhos dela. E é nessas horas que você se arrepia e tem vontade de escancarar a janela. Pregar na porta que está ocupado. Virar escravo por toda eternidade. Mentir com a cara mais lavada e soltar aquele disparate só porque está sob os efeitos dela, hipnótica e encantadora. Intrépida e inodora. Arredia e devastadora a desinibir cofres afora. A revelar segredos intensos. Que sabe o que quer independente da hora. Essa força-encanto irritante que me fez levantar no meio da noite para estar aqui agora.
Crônica do livro “As Maravilhas do País de Alice”, Scortecci Editora, São Paulo, 2008.
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