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Meus passos – Antônia no Divã

Tudo começou em um carnaval há dois anos. Depois de algumas cervejas, era hora de me locomover, e pedi a uma amiga que não havia bebido para levar o meu carro até a lancheria onde curaríamos a nossa bebedeira. Horas depois de comer, eu já estava me sentindo melhor para dirigir – aliás, eu já tinha pegado o volante bem pior em outras vezes, ainda que não me orgulhasse. Um amigo então sugeriu que eu lhe desse uma carona, já que sua casa ficava apenas duas quadras de onde estávamos, e eu prontamente aceitei. Eis que em seu caminho ele escolhe uma rua fechada por policias para a blitz da Balada Segura. E vestindo uma camiseta de bloco, purpurina no rosto e cílios postiços que batiam na minha testa, fui parada pelo policial: “moça, preciso que a senhora faça o teste do etilômetro”.

Pronto. Era o fim da minha carteira.

Chorei aquilo que foram 7 dias seguidos. O meu irmão foi o único para quem eu tive coragem de contar. Ainda que meus pais já não fossem responsáveis por mim há muito tempo, senti uma imensa vergonha da minha irresponsabilidade. E aqui eu não estou falando da irresponsabilidade de ser pega em uma blitz, mas de me colocar nesta condição de risco (tanto para mim quanto para os outros), de novo, de novo, e mais uma vez. Uma parte de mim ficou feliz com o castigo, eu confesso. Talvez porque desde pequena eu sou aquela que infelizmente não aprende com avisos, mas sim, a duras perdas. Paguei quantias exorbitantes entre multa e advogado para prorrogar a suspensão do meu direito de dirigir por algum tempo, até que eu pudesse me organizar a nova rotina. Bem, esse dia chegou, muito antes do previsto.

Semana passada eu entreguei minha carteira. Na verdade o B.O. da minha carteira, pois consegui perdê-la exatamente a 1 dia de entrega-la. Um ato falho que possivelmente acusava que o meu psicológico estava em negação – afinal, depois de 13 anos dirigindo, eu tinha que ficar 1 ano sem a autonomia que eu tanto amava. (Aliás, todo mundo que me conhece anda em choque com essa novidade, por saber do meu amor por voando as tranças por aí). Mas eu não tinha mais escapatória. Tinha que sair da bolha em que eu vivia, e me juntar a massa majoritária que dependia do transporte público. Aquele que eu achava tão dignificante lá em Londres. É engraçado como encaramos as mudanças lá fora como transformações que edificam a nossa personalidade (veja o depoimento de Sasha Meneghel assumindo que leva a louça e arruma a própria cama em Nova York – guerreira! Uhu!). Em compensação quando essas mesmas situações nos são impostas no berço de nossa origem, o gosto deste aprendizado não é doce, é amargo.

A semana que passou foi a primeira que deixei o carro em casa, e apostei no trem, no Uber, no ônibus, nos meus passos. E confesso que agora existe todo um ritual de planejamento envolvido nesta mudança. Antes eu jogava toda a minha vida dentro do meu porta-malas. Agora carrego a ela nas costas – uma versão bem mais leve, é claro. Antes eu podia sair com minutos de antecedência. Agora eu precisava considerar tempos de deslocamento, impossibilidades, atrasos, desvios, e velocidade que eu movimento as minhas coxas grossas. E aqui não é soar classista, o paradigma não está em perder luxos, ou não se misturar a massa – eu sou a massa. O aprendizado está em ver beleza na transformação que, de um jeito ou outro, eu provoquei.

O QUE APRENDI

Em alguns dias sem CNH, eu vi a beleza de perder meus olhos pela cidade, e não apenas no trânsito, ou no celular. Finalmente sofri do efeito sonífero que o trem tem, com seu balanço que nana como colo de mãe. Que motoristas de Uber tem se organizado para atender todas as regiões, inclusive “Pequenópolis”, onde eu moro. Entendi também que uma das melhores partes desta viagem sob meus passos, é que as pessoas ainda fazem gentilezas, como oferecer um canto no guarda-chuvas, ao me verem ensopada ao lado delas. Que a gente conversa mais com estranhos, inevitavelmente, e isso é enriquecedor. Aprendi que secar a franja no ar-condicionado do Uber é mais fácil do que no meu carro, e o motorista ainda me achou super inventiva. Aprendi que ganhei horas para ler e escrever, e que sair de casa com antecedência não precisar ser uma perda de tempo, e por vezes, um ganho de tempo.

O QUE PRECISO APRENDER

Neste mesmo tempo, descobri o que eu preciso aprender a pedir carona – por dois motivos, a) porque eu sempre dei carona e nunca me importei em dar – ora, eu perdi a carteira fazendo exatamente isso – b) porque não é feio pedir favor/ajuda. Eu também descobri que preciso deixar de ser teimosa e levar guarda-chuvas, pois água nenhuma tá nem aí para meu desgosto em carregar sombrinha, e me molha indiferente da minha birra. Preciso aprender a desviar dos jatos dos carros na calçada – aliás, que fique registrado aqui a minha vergonha por nunca ter prestando atenção nisso para com os pedestres enquanto dirigia. Preciso para ontem melhorar meu cardio, e afinar as coxas grossas (ou apelar para o talco). A planejar despesas de viagem. E por fim, e não menos importante, preciso aprender a desapegar cada vez mais. E depois, desapegar mais um pouco.

Hoje aprendi que toda perda tem também um ganho. Porque no fundo eu não perdi a minha liberdade e autonomia junto com a carteira de motorista. Eu apenas ganhei a oportunidade de praticá-las com meus próprios passos. E estes, ninguém segura. As minhas coxas grossas vão se acostumar, eventualmente.

Fim da sessão.

Antônia no Divã

Uma questionadora fervorosa das regras da vida. Viajante viciada em processo de recuperação. Entusiasta da escrita. Uma garota no divã figurado e literal. Autora do blog antonianodiva.com.br.

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