Dentro de cada um de nós há milhares de partículas vivas ansiando cada qual por alguma coisa. E esses inúmeros anseios que nos habitam, ora têm motivações coincidentes, ora discordam completamente. No fundo, somos unidades vivas caóticas perambulando por aí. E, na maior parte das vezes, apenas cruzamos uns com os outros, sem que nossos olhares se encontrem, sem que nossas almas se toquem.
Cada um de nós trava suas batalhas diárias e pessoais, sabendo muito bem e exatamente onde é que dói, onde é que o prazer acontece, onde é que se é indiferente, onde é que já não se sente mais nada. Há partes de nós que se quebram, que adoecem que carecem de cuidados.
Não raras vezes somos despertos por uma dor incomum, ou uma reação do corpo exagerada. E quando esse sintoma é físico, aqueles de nós que contam com uma existência minimamente organizada, levam essas impressões àqueles outros de nós que se dispuseram a aprender a ver, considerar, compreender e buscar a cura para as misteriosas disfunções orgânicas.
Quando o corpo dói, ou não funciona como deveria, procuramos os médicos. E é lógico que esperamos que essa pessoa, academicamente formada para curar, nos examine e ausculte e apalpe e sonde, até que se descubra o que é que afinal há de errado conosco fisicamente. Mas, na verdade, também esperamos que por dentro desse especialista em doenças, haja um ser humano que nos considere algo além de um organismo vivo.
Esperamos ser enxergados além da ferida visível, da dor aguda ou crônica. E muitas vezes, inclusive, nos esquecemos que aquela pessoa ali na nossa frente é também alguém que dói, que adoece, que tem lá suas mazelas. O fato de serem médicos não os imuniza, não concede a eles nenhum superpoder. Mas, somos sempre tão distraídos em relação às relações humanas, não é?
Ahhhhh, mas a coisa pode ficar ainda um tantinho mais complicada. A dor física, em todo caso, é aquela imperfeição tolerada. Afinal, somos feitos de carne e osso! A doença do corpo é permitida, é reconhecida. Muitas delas, mobilizam milhões de pessoas em campanhas envolvendo lacinhos cor-de-rosa, troca de fotos de perfil nas redes sociais e tudo o mais. A doença física é perdoada, desde que não seja contagiosa é claro! Mas… o que dizer daquela outra? O que dizer das doenças que não se resolvem com cirurgias, antibióticos ou curativos?
Até que ponto estamos preparados para acomodar em nossos espaços aqueles de nós que teve a infeliz ideia de ter uma dor psíquica. Até que ponto estamos dispostos a admitir que a esquizofrenia, a bipolaridade, a depressão e tantos outros transtornos são tão reais quanto o diabetes ou a hipertensão? Quantos de nós está preparado de fato para admitir-se doente, quando a doença é invisível? Quantos de nós entende a nobreza e profundidade da missão assumida por um psicólogo? Quantos de nós é capaz de entender que a Psicologia é uma ciência, e como tal precisa ser olhada, assumida e respeitada?
A busca por ajuda psicológica deveria acontecer com a mesma naturalidade que acontece a busca por um analgésico quando nos dói a cabeça, o nervo ciático ou a unha encravada. Tratar a dor psíquica não deveria ser considerado supérfluo ou secundário. Admitir ter a dor psíquica não deveria vir acompanhado do peso e do estigma de “não ser normal”. Até quando vamos fazer de conta que os males psicológicos são menos importantes, ou menos incapacitantes? Até quando vamos fechar os olhos para o número alarmante de suicídios que acontecem, mas são abafados, escondidos, ignorados?
As maiores e mais devastadoras tragédias acontecem assim, no silêncio, nas verdades veladas, nos “não-ditos”. E, já que temos por coincidência o mesmo chão para pisar e o mesmo planeta para habitar, tenhamos a sabedoria para entregar aos médicos o corpo adoecido e aos psicólogos os nossos descabimentos, angústias e ferimentos internos. Quem sabe assim, abrindo mão de certezas congeladas e ideias pré-concebidas, não acabemos por descobrir em nossas costas humanas as asas de um anjo. Pois anjos podemos ser todos nós… os médicos, os psicólogos, e até mesmo, os anjos, desde que tenhamos a sabedoria de abrir mão das tolas crenças cristalizadas.
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