Tudo o que é bonito, me grita poesia dentro. Às vezes eu escuto. Às vezes eu me perco no meio da boniteza e quando dou por mim, a poesia me acena do outro lado do barco, já quase atravessando o rio. Porque a poesia tem o tempo dela e não é pra qualquer um que ela se enfeita. Assim como não é por acaso que ela me visita. Bem às vezes.
No dia em que essa moça me apareceu toda, a poesia quis fazer um samba no meu peito. Por não ser freqüentadora desse tipo de roda e por ser pacata mais do que devia, eu não soube acompanhar o ritmo. Me perdi no primeiro compasso tentando observar de perto o que era pra se contemplar de longe. Falta de costume com esse ritmo de andamento variado.
Mas o tempo foi passando e como tudo o que é belo se densifica por si mesmo, no dia em que essa moça bem resolveu me olhar nos olhos, a poesia quis riscar um tango no meu peito. Beleza dessa natureza era muita realeza para as minhas rimas pobres de poesia. Como desviar não era opção e retribuir não me era de direito, seqüestrei-a para terras portenhas onde distração era profissão e alumbramento, engenho. Apaixonamo-nos por sons, cores e texturas que não eram nossas. Dividimos cheiros, bons ares e descanso. Vivemos um mundo de paixões intensas onde tudo se resolvia como um copo de cerveja. Uma garrafa de vinho. Um pedaço de alfajor. Uma sintonia rabiscada nas estrelas e soldada por desejos parecidos que lembravam gosto de doce de leite. Porque se o tango fosse um doce, seria um bom doce de leite portenho. Ou que sabe um fondue no inverno.
E como toda beleza traz o seu avesso disperso, voltamos para casa embaladas pelo som triste do bandoneón que cismava em circular por nossas veias. Difícil encarar a realidade cortante de um dia a dia sem tantas primazias. Nada mais doloroso do que se ter que preencher o vazio com adereços nem tão coloridos assim. E nem tão doces. Aos poucos fomos nos acostumando com o sabor mais ameno dos dias comuns. Com as texturas nem tão delicadas. Com os sabores outros que nos foram sendo dados de uma só vez. Voltar pra casa pela primeira vez parecia errado. O certo seria viver para sempre naquele mundo de excessos deliciosamente viciantes e irresistíveis.
Mas aí começou fevereiro, com seus estribilhos da carne e suas movimentações específicas. E no dia em que essa moça me convidou a entrar em sua casa, a poesia armou um bloco de carnaval bem no meio do meu peito. Ficara pra trás a quaresma ainda não vivida e o jejum dos dias sem gosto. Nesse nosso carnaval, não haveria quarta-feira de cinzas. Apenas terças-feiras gordas. Bem gordas. Cheias de dias frescos e brisas fartas que movimentariam toda uma cidade. Porque era bom lembrar que vivíamos na mesma capital onde tudo virava carnaval com a maior facilidade. E se o doce de leite soava pesado com o calor que fazia nessa cidade, celebraríamos a magia com a festa de texturas que é uma boa salada de frutas inventada. E seríamos felizes com nossas cores próprias. Nosso batuque inconfundível. E essa coisa que a gente não entende de querer ir atrás de todo e qualquer tipo de bloco de rua. Procurando sabe Deus o quê. Encontrando sabe Deus onde.
A minha alegria hoje eu encontro na beleza celebrada por causa dessa coisa de carnaval que irradia da moça. Da moça e do cheiro do creme. Do cheiro do creme que irradia da moça.
Poesia acetinada que hoje perfuma o meu carnaval sem rodeios.
Belo como toda poesia. E acetinado como o creme dela.
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