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Nós, os que sentimos ter nascido na época errada.

De repente a gente sente um desajuste, um desconsolo, uma tristeza de não ter nascido em outro tempo, outra época, outro canto da história. Acontece durante um filme, uma leitura, uma lembrança, uma conversa. O sentimento chega e senta com a gente um pouquinho, mexe com os nossos sonhos, provoca nossas vontades como quem diz “ahh… se você estivesse lá naquele tempo…”

Num dia é gostoso como cochilo em hora boa, no outro é chato como um motor barulhento rasgando o lençol da noite. Ora é uma vontade de ter nascido em algum lugar do passado, um tempo menos corrido, menos sofrido, ora é uma impressão de que chegamos mais cedo, de que somos de um canto no futuro em que as limitações já não existem, as doenças tiveram fim, os carros ganharam asas, o teletransporte é real, a miséria desapareceu e os miseráveis foram acolhidos e se tornaram trabalhadores como todos os outros, honestos, aplicados, bem-sucedidos.

Nós, os que sentimos ter nascido em época errada, olhamos casas antigas, geminadas, e pensamos sobre como elas eram no passado. Que famílias viveram ali? Que sonhos tiveram? Que conversas nasciam e cresciam em seu dia depois do outro, que ternuras enfeitavam suas noites, que cheiros marcavam suas manhãs, que saudades preenchiam suas tardes? De pensar nessa gente, sentimos por elas um carinho de conterrâneo, um afeto tribal de quem habita o mesmo tempo.

Ô saudade enxerida! Pega a gente no pulo, enquanto olhamos uma fotografia em preto e branco. Os homens de chapéu, as mulheres de sombrinha caminhando sem pressa. Que privilégio têm os que aproveitam seu avós! Os que ouvem as histórias dos mais velhos e as reconhecem com gosto, como se lá também tivessem estado.

Eu sou desse povo com mania de achar que nasceu no tempo errado. Não é só o passado que mexe com a gente, não! Quem sente ter nascido fora de época também tem saudade do futuro, de um tempo que ainda não veio. Assiste a um filme de ficção e pensa “puxa, vida… imagine o que vai ser quando inventarem o teletransporte?”. É assim que é. A gente sonha. Sonha com os dias que não são os nossos.

Sonha porque tem a impressão de pertencer a outro tempo, não a este agora insano, este pega-pra-capar, este mato-sem-cachorro, este baile de máscaras, esta briga sem sentido. A gente sonha porque sente ser de outro lugar. Porque sofre esse desajuste, esse gosto de caqui verde amarrando na boca, essa impressão de que está na época errada.

Chamem a isso como quiserem. Desencanto, insatisfação, desconsolo com os dias que correm, com a falta de modos, a escassez de valores, a truculência surrando a gentileza, a solidariedade esmagada sob os pés da multidão arisca. Não importa. A gente sente que nasceu na hora errada e isso nem sempre se explica.

Mal sabemos nós que não há erro nenhum, que as coisas são assim mesmo. Que não há tempo errado, só há o tempo e ele será sempre um infinito e certeiro agora. Sequer desconfiamos de que o passado remoto ou o futuro distante só existem porque os levamos no coração com carinho, regando sua terra, preservando suas raízes, aparando suas folhas, ajeitando-os de manhã em um cantinho de sol gostoso, à tarde na brisa, à noite no sereno. Mas não tem jeito. Ainda que soubéssemos de tudo, ainda que não houvesse mais do que suspeitar, seguiríamos achando que nosso tempo é outro.

Nós, que sentimos saudade do que não vivemos, sequer desconfiamos de que essas horas seguirão vivas para sempre, a despeito da cronologia e demais convenções. E que daqui a uns anos os nossos filhos, nossos netos e bisnetos e os tantos outros que virão de nós vão olhar uma fotografia antiga, respirar fundo e dizer “no tempo dos meus pais era diferente…”, “meus avós nem sonhavam com uma coisa dessas…”, “quando meus antepassados eram meninos não era desse jeito…”, “que teletransporte, o quê? Era de avião mesmo!”.

Algum dia lá na frente, se Deus quiser, os que virão de nós também vão pensar sobre isso tudo, com o coração cheio de sonhos e os olhos grandes de saudade do que imaginarão nunca ter vivido. E vão sentir como nós esse gostinho de desajuste, de descompasso, de lembrança desconhecida. No desembarque de uma exaustiva viagem de trinta segundos de um lado a outro do mundo, também vão ter a sensação antiga e estranha de que nasceram na época errada. Mal saberão eles. Mal saberão.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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