Olhei para a falta uma última vez. Havia muitos dias que toda a minha atenção era só dela. Mimada. Minha vida inteira tornou-se um ato lento e morno de sobreviver, de passar pelos dias, um ensaio gordo de dormir, trabalhar, comer e esperar. Mas a grande verdade é que depois que adultecemos, ninguém mais vem. É preciso acordar para o fato irremediável de que se a gente não vai, se a gente não parte, se a gente simplesmente se senta e espera, ela nos engole. Ela, mesma: a falta.

O inverno acabou, as janelas estão postas, famintas pelo novo. Nessa manhã, testei meus dedos dos pés no ar, sentado na cama, ainda sem pisá-los no chão. Ensaiei o primeiro passo e depois o segundo, que é sempre o mais difícil. Logo em seguida, passei um café como minha avó fazia. Café daqueles que desperta a alma.

Arranquei duas folhas do caderno antigo. Escrevi com a pressa de quem compõe, duas listas. Eu adoro listas. São como compromissos com minhas próprias manias. Enfileirei primeiro o que gosto de fazer. Tudo aquilo que não é sobreviver. Que é banal, que é prazer, que só faz sentido pra mim. Tudo aquilo que sou quando não estou concentrado na falta que sinto de nós.

“Abandono apenas a falta. Que imobiliza, que atrofia, que impede a gente de perceber a existência inata e certeira de nossa melhor companhia”

Eu gosto de sair de casa para ler, de dormir de rede, de comer em portinhas, de dizer para meus amigos que os amo em horas impróprias, de ajudar desconhecidos. Eu gosto do som da orquestra afinando, de bisbilhotar lugares até então ocos de sentido, bagunçar meus horários no final de semana, eu gosto de cheirar o mar.

Enfileirei depois, na folha segunda, tudo aquilo que ainda gostaria de experimentar. E lá estava uma folha inteira de curiosidades bobas para serem vividas, de conhecimentos desnecessários que me encantavam, de viagens que eu nem mesmo sabia se poderia pagar, mas que estavam ali, endereçados ao universo imenso que sou quando quero muito qualquer coisa. Lá também estavam todas as frutas que só conheço por nome, minha ida ao planetário adiada, o restaurante que me convida sempre que passo na calçada.

Lá estava outra parte de mim que andava soterrada pela falta: minha vontade imensa de ir ver, de viver. Sua saudade será sempre sentida, nossas memórias serão sempre cultivadas. Sigo sentindo saudade, tendo visões travessas do seu cheiro pela casa. Abandono apenas a falta. Que imobiliza, que atrofia, que impede a gente de perceber a existência inata e certeira de nossa melhor companhia.

Diego Engenho Novo

Escritor, publicitário e filho da dona Betânia. Criador do blog Palavra Crônica, vive em São Paulo de onde escreve sobre relacionamentos e cotidiano.

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Diego Engenho Novo

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