Categories: André J. Gomes

A grosseria é uma droga pesada e estamos todos viciados.

No consultório médico, um paciente se aproxima da recepcionista e dá início ao seguinte diálogo.

– Bom dia! – diz o paciente.
– Pois não. – ela responde secamente.
– Tenho uma consulta às oito horas.
– Empresta a carteirinha.

Faltam dez minutos para o horário da consulta. O homem lhe entrega a carteirinha do convênio médico e a moça encerra a conversa:

– Só aguardar.

Resistente, o homem tenta mais uma vez:

– Obrigado, moça.

Mas ela não responde. Quarenta minutos depois, às oito horas e trinta minutos – com meia hora de atraso – o homem tem seu nome chamado e é atendido pelo médico.

A recepcionista não foi capaz de um único “bom dia”, nem um só “por favor”, “obrigado”, “de nada” e coisas assim. Por sua vez, ao atender seu paciente com meia hora de atraso, o doutor foi incapaz de uma frase simples: “o senhor me desculpe o atraso, eu tive um contratempo”.

Sem notar, todos eles – a recepcionista, o médico e o paciente – afundaram-se mais um pouquinho no vício da grosseria, essa droga pesada e maldita que nos destrói aos poucos.

Cada um dos três se comporta como quem já não vive sem a tal substância. A recepcionista, inapta para o mínimo gesto de gentileza, é antipática e insensível a ponto de parecer sequer compreender o que está fazendo. É um zumbi, um robô, uma alma fria e indiferente.

Já o paciente ainda tenta um “bom dia” e um “obrigado”, mas acaba vencido e se torna permissivo, deixa-se subjugar sem resistência, aceita não ouvir a resposta a seu “bom dia” e não reclama de ser atendido com meia hora de atraso.

O médico, aquele que deveria dar o exemplo à funcionária da recepção, perde a chance, confirma o descaso, atesta a incompetência de sua estrutura: ao não se desculpar pelo atraso, perpetua um erro grosseiro. Piora ainda mais um quadro já tão sério.

Como todas as drogas pesadas do mundo, a grosseria arranca de nós uma série de qualidades. Observe. Estamos perdendo a capacidade para a gentileza, os bons modos, o cuidado com o outro. Nossos valores estão se debilitando e adoecendo como o organismo de um viciado em crack. Nossa sensibilidade se curva, nossa inteligência se achaca, nosso discernimento se prostra. Feroz e implacável, o vício na grosseria nos transforma em monstros desumanos e entorpecidos sem sequer percebermos. O mundo, por sua vez, vai se perdendo e destruindo tal qual as famílias abatidas pelo vício de um ou mais de seus membros.

A febre se alastra por todos os cantos. Nas escolas, nas empresas, nas casas, nos programas de televisão, nas redes sociais, nas ruas, nos supermercados há cada vez menos gente pedindo licença e agradecendo, cedendo passagem e oferecendo ajuda. “Bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” são expressões raras que logo só vão existir nas aulas de história, enquanto restarem professores de história. Em breve, a delicadeza será vista apenas como mesura inútil, falsidade ou “coisa de quem quer alguma coisa em troca”. Porque estamos todos, em algum grau, de alguma forma, tocados pela droga da estupidez.

Crianças de quatro anos dão ordens a garçons em restaurantes: “traz uma coca-cola!”, sem sequer um tímido “por favor”. E os pais os olham divertidos, como quem diz “olha que graça… já sabe pedir!”. Casais, pais e filhos, amigos e colegas se tratam sem economias de “cala a boca”, “sai da frente”, “faz o que eu mando” e outras patadas quase sempre expressas aos gritos. Toda relação que devia ser permeada de afeto e cuidado sofre pisoteada por grossuras, descuidos e crueldades.

Dia desses, um amigo querido me pediu um favor sem usar a expressão “por favor”. Ele simplesmente me mandou uma mensagem dizendo: “faz pra mim um texto assim?”. Eu fiz sem perguntar nada, como fazem os amigos. Enviei e ele não me respondeu. Uma semana mais tarde, mandei a ele outra mensagem para saber do trabalho. Ele me respondeu qualquer coisa, mas não me agradeceu pela ajuda. Nem um único “Valeu!”. Então eu provoquei e agradeci a gentileza da resposta, mas meu amigo não percebeu a ironia. E tudo ficou por isso mesmo. Por quê? Porque tanto ele quanto eu somos dependentes de grosseria e sequer pensamos no assunto.

Não nos enganemos. Quem aceita uma indelicadeza de qualquer tipo é tão viciado quanto quem a pratica. A grosseria é uma droga pesada e nós estamos todos viciados. E o pior, a exemplo do que acontece com os adictos a outras drogas, somos incapazes de assumir que estamos doentes e buscar ajuda.

Não vai ser fácil deixar o vício. A abstinência é dura, o tratamento é longo e os remédios são amargos. Para viciados em coices, apatias e descasos, um simples “por favor” arde na boca e desce rasgando a alma. Um mero “obrigado” provoca rejeição violenta, vômitos, desmaios e outros efeitos. Mas uma hora, com a força do doente e o apoio da família, a crise passa e o tratamento vai se tornando mais brando e eficaz.

Então nosso maior trabalho será como o de qualquer dependente em recuperação: evitar a primeira dose, desviar ao menor sinal de indelicadeza, fugir de qualquer grossura, recusar todo convite à rispidez. Só assim, quem sabe, viveremos com mais afeto, mais apreço e mais amor por toda gente tanto quanto por nós mesmos, um dia depois do outro, livres, leves e gentis.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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André J. Gomes
Tags: grosseria

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