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A ditadura burra do saber tudo- Antônia no divã

Aurides tem 65 anos e é motorista de Uber. Logo que entro em seu carro ele me avisa “tô aprendendo, tá?“. E eu sorrio de volta, em compreensão. O GPS estragou, o app do Uber segue lento. Ofereço-me para ligar o Waze e ele concorda. Entrego o telefone para que ele veja o mapa, mas ele discorda: “prefiro que tu me guies, menina, se tu não te importares”. Em qualquer outra circunstância eu provavelmente me incomodaria pelo “esforço a mais” de ter que guiar o motorista, mas há algo de lindo na sinceridade de Aurides. Ele sabe muito mais que eu da vida, mas não se sente mal em dizer – “não sei fazer, pode me ajudar?”. A maioria de nós jovens, sente vergonha em não saber algo, ou é orgulhoso demais para pedir ajuda. O Aurides sabe admitir que precisa de ajuda, e isso é bem melhor do que saber usar o Waze.

Talvez seja culpa do mercado competitivo. Ou talvez da economia em crise. Hoje todo mundo tem que saber de tudo. Isso inclui conhecimento aplicado em transações cambiais internacionais, os interesses políticos, econômicos e militares envolvidos na região da Síria, até as propriedades químicas do suco verde no organismo. Todo mundo é um pouco advogado, engenheiro e político. Melll dellls, como sabemos de tudo, e entendemos muito de nada. A gente prefere ceder à pressão de ter que estar constantemente ligados à todas as questões do universo de forma superficial, do que se aprofundar naquelas que realmente nos importam por medo de não saber de algo.

Hoje entendo porque a nossa infância é o momento de maior ascensão da nossa sabedoria. Porque ela é desprovida de julgamento. Somos esponjinhas naquela fase. A gente não se preocupa com quantos tombos vai levar até manter equilíbrio da bicicleta, porque o importante é aprender a andar nela. Não tem vergonha de ter letra feia – afinal essa é uma opinião muito subjetiva. A gente não entende o que é “subjetiva”, mas pratica ela na sua essência, quando alguém nos corrigia, e nós respondíamos “mas esse é o MEU jeito de fazer as coisas”. Os adultos até tentavam encurtar o nosso processo de aprendizado, dando-nos alguns atalhos, mas a gente teimava pelo caminho mais comprido – talvez porque ele fosse o mais bonito. Aprendizado, no final das contas, é uma estrada, não importa se você vai de Uber ou a pé.

Hoje eu acho lindo não saber alguma coisa. Dá-me acesso à outras perspectivas, outras verdades, outros jeitos de ver a vida. Mas sempre que me perguntam “você sabe fazer isso?” ou “você sabia disso?” eu sempre tendo a titubear. Meu coração quer dizer “não, eu não sei”, mas meu cérebro implora que eu diga sim – “depois você aprende fazendo/procurando no Google/ chorando em desespero” é o que digo para mim mesma, tentando não decepcionar o meu ego. Nestas horas eu queria ter a coragem da criança curiosa que já fui. Até porque eu sempre gostei de me envolver com pessoas mais inteligentes que eu – sempre ouvi dizer que se eu fosse à pessoa mais inteligente da sala, eu provavelmente estaria na sala errada. Então não saber alguma coisa, deveria ser visto como um luxo e uma oportunidade. Não é?

Na minha última entrevista de emprego, olhei para o meu possível futuro chefe, um garoto novo e cheio de vontade de aprender, e disse-lhe que podia lhe enviar o meu currículo por e-mail, já que tratando-se de uma entrevista informal, eu não o tinha comigo. E foi então que na sua imensa sabedoria de 20 e poucos anos, ele me respondeu que não queria o meu currículo. “Eu não quero saber o que você fez, quero saber o que você pode fazer”. Ali me caiu uma ficha enorme. Tudo o que eu tinha feito no passado, até podia me dar base para os meus novos desafios, e isso era importante. Mas a minha vontade de aprender coisas novas, essa sim é simplesmente essencial para as perspectivas que se criariam no futuro.

Então de novo, voltei o pensamento para o Aurides, o motorista do Uber. Ele tem 65 anos e se acha muito novo para ficar em casa, quer dirigir Uber para conhecer pessoas e lugares novos. Ele tá aprendendo a andar por Porto Alegre, mas é perito em simpatia. Ensinei-o a usar o Waze, e ele me ensinou a não ter vergonha de dizer que eu tô aprendendo. Em qualquer idade. E eu tô mesmo aprendendo.

P.S.: A foto de capa é verídica e foi registrada nas ruas de Porto Alegre. Um grande salve a sinceridade e humildade desta aprendiz de motorista.

Antônia no Divã

Uma questionadora fervorosa das regras da vida. Viajante viciada em processo de recuperação. Entusiasta da escrita. Uma garota no divã figurado e literal. Autora do blog antonianodiva.com.br.

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