Eu prometi para mim que não contaria os dias da tua ausência. Mas essa foi mais uma das vezes que me enganei para poder sobreviver a nossa separação. Como uma dependente química em recuperação. “Hoje eu sobrevivi mais um dia sem meu irmão”. Fato é que eu contei cada um dos dias desde a tua partida, e neste domingo chegamos a marca de 365 dias sem você.
Eu iniciei uma relação bem estranha com o tempo desde que você se foi. O tempo, esse desgraçado, passou a coexistir em duas velocidades: às vezes parece que um vida inteira já aconteceu desde a nossa despedida. Em outros dias, sinto que foi ontem que te vi pela última vez. O tempo é impiedoso, sabe? Eu passei a ter raiva de como ele passa de forma tão despretensiosa. Como ele pode correr livremente se, por vezes, me sinto paralizada?
365 dias. Cheios de primeiras vezes que nunca planejei. Foi a primeira vez que eu quis morrer com todas as minhas forças. Não porque não queria mais viver, mas porque não queria mais sentir dor. Uma dor tão estranha e aguda. Foi a primeira vez que eu não consegui sair da cama por 30 dias, sendo que em 7 deles eu não comi ou tomei banho. E quando saí foi pra enfrentar a minha primeira guerra pela tua memória, no famoso episódio do teu diploma. Talvez ali eu tenha me reconhecido pela primeira vez de novo, porque estava no papel de tua irmã, travando um duelo entre titãs: o nosso luto Vs a falta de empatia.
Teve o primeiro Natal sem você e suas desculpas esfarrapadas pelos atrasos de sempre, como senti falta do teu jeitinho espaçoso de entregar o presente que eu tinha comprado para a mãe, sem nunca me pagar a tua parte. Coisa de irmão mais novo. O meu primeiro aniversário, o teu primeiro aniversário, o aniversário dos teus irmãos, da mãe, do pai. Datas que eu pirei em silêncio tentando inutilmente compensar o falta do teu “parabéns a você”. Ninguém podia imaginar como eu sofri tentando minimizar a saudade gritada que pairava sobre o teu silêncio.
365 dias que eu calculei tudo que tu teria feito. Quantos shots tu teria tomado na tua formatura. Quem tu carregaria bêbada na formatura das tuas amigas. Contei na minha cabeça quantas ligações minhas tu ignoraria, para então depois do meu discurso afetado, quantas desculpas tu pediria, como tu fazias com todas as pessoas que tu gostava. Fiz uma planilha de Excel com projeções de quantas pessoas tu terias ajudado através da medicina, e travei uma meta de propósito de fazer mais pelo mundo para compensar a falta da tua benfeitoria.
Eu contei cada cheesecake que comi e que teria dividido contigo, ainda que brigando pela maior fatia. Cada série de Netflix que gostaria de ter feito review do teu lado. Fiz um inventário de todas as músicas que deveriam ter sido embaladas com o gingado tosco e hilário que tu fazias imitando as divas. Perdi-me no controle das lágrimas acrobatas que me escorreram sem aviso. Ou de quantos cigarros eu fumei na sacada olhando para o céu implorando de forma egoísta por um sinal teu. Eu sei que tu estás onde precisava estar, ainda assim fazem 365 dias que eu e Deus não conseguimos nos acertar. Eu também sei que a culpa não é dele, mas a minha imaturidade e humanidade me fazem errante, inclusive nesta pauta.
365 dias que eu finjo ser forte. Para a maioria das pessoas por pura convenção. Eu nunca sei quantos minutos de tolerância vou ter das pessoas antes delas tentarem desviar o assunto quando me pego falando de ti. Ao passo que também finjo ser forte para não lidar com as reações de pena que as pessoas separam para mim, sempre que por iniciativa dos outros o teu nome surge na conversa. Faz 365 dias que eu forço sorrisos e digo “tá tudo bem” quando não está. 365 dias que não paro de me remoer de culpa sempre que eu tento seguir a diante e de fato consigo, porque nunca imaginei a vida sem você – e por conseguir viver, me assusto. Um ano inteiro de momentos felizes que dependem de eu me distrair da impossibilidade de tu dividir comigo as minhas risadas, memórias e momentos que teriam sido separados só pra ti.
Faz 365 dias que eu sigo interpretando uma versão mais iluminada de mim mesma toda vez que o Murilo pergunta algo de ti, ou que o Mateus faz planos de te visitar no céu. Eu tento explicar que não tem como te visitar ainda que tenha o mesmo desejo dos teus irmãos de apenas 6 aninhos. Eu também queria te visitar no céu. Eu morro por dentro um pouquinho a mais, toda vez que o pai repensa maneiras de ter evitado uma fatalidade. Ele nunca vai assumir a humanidade dele, porque ele é teu pai, e isso tem um peso enorme de herói que machuca muito. 365 foi o número de vezes que eu fingi ser indestrutível ao lado da mãe e por toda a pá de coisas que ela teve de lidar desde que tu partiste. Eu inventei uma série de maneiras para levantar ela do chão, fazê-la sorrir e mentir que vai ficar tudo bem, quando eu não tenho certeza de nada. Eu aprendi neste ano que não existe termo para quem perde um filho, como quem perde os pais se chama de órfão, ou quem perde o cônjuge é viúvo ou viúva. Perder um filho é tão injusto e brutal que ninguém ousou dar nome pra esse lugar.
365 dias que eu me distraí buscando conforto. Eu bebi minhas dores. Sendo que eu sempre havia bebido as minhas alegrias. Que eu reconheci o fundo do poço da tristeza. Que voltei para a terapia. Saí da terapia. Me dei alta, fiquei alta, fiquei puta. Eu nunca fiquei tão puta da vida como nestes 365 dias. 365 dias que eu me senti sozinha, não porque não tive amparo, mas porque tu és e sempre serás insubstituível. Uma presença latente viva nos meus pensamentos, sonhos, lágrimas e sorrisos. Ouço há 356 dias que tu estás vivo em mim, e me indigno por sentir que não é suficiente.
Eu escrevi esse texto dentro de um avião, cruzando os céus – tão perto mas não longe de ti. Chorei o caminho inteiro de São Paulo a Porto Alegre lembrando que foi exatamente nestas condições que eu me despedi de ti pela primeira vez. Tu me esperavas chegar de um voo tarde, daqueles que eu tinha mania de pegar e por isso ninguém queria me buscar. Mas tu ias. Porque passou a ser mais responsável com as minhas necessidades nos últimos anos. E porque gostava de aeroporto, como eu. Recebeu-me com o Django no colo, e me abraçou sonolento. Perguntou da minha viagem e me deu dois livros de presente – “para inspirar o teu livro”, me disse encorajando o velho sonho. Me contou sobre a troca da tua música de formatura, fez planos de uma viagem que faríamos juntos no teu pós e me beijou a bochecha dando boa noite. Faz 356 noites que elas não são mais boas.
365 dias. 8.760 horas. 525.600 minutos. Todos cheios de saudade. Uma saudade imensurável, mas ainda assim, somada dia após dia. Até a gente se encontrar de novo.
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