– “Filha, não precisa me buscar no aeroporto. Eu pego o trem”.

– “De jeito, nenhum, mãe. Eu faço questão”.

Ela encerra a ligação agradecida, ainda que não tivesse tido tempo de explicar. Não que eu não fizesse questão de dar uma carona para a minha mãe, mas naquele contexto, o que eu fazia questão ali, era o aeroporto.

Eu adoro aeroporto. Gente chegando, gente indo embora. Pessoas se despedindo com lágrimas nos olhos, ou se reencontrando com sorrisos largos. Últimos beijos, primeiros abraços. Adoro chegar com antecedência e me pôr a vislumbrar histórias de partidas e chegadas, ou mesmo de inventá-las, com roteiros elaborados, dignos de blockbusters. Eu me sento com o meu pão de queijo ultra-inflacionado, um café expresso e observo os passos apressados seguidos de malas, mochilas, bolsas e travesseiros de pescoço.

Faço uma leitura visual dos passageiros, e simulo seus itinerários. “Aquela ali vai viajar pra longe da família pela primeira vez, pelo pranto da mãe. Europa, pelo tamanho da mala. Ninguém vai pra Austrália com tudo aquilo.”– concluo. “As pranchas daqueles lá indicam uma surf-trip dos amigos. Chile, provavelmente, um deles derrubou a roupa de borracha tipo long.  Mas o chapéu de palha do outro acusa que pode ser El Salvador.” “O cara de terno e micro-mala vai a São Paulo a negócios. Pela cara dele, ele trocaria a selva de pedras por qualquer mar do Caribe”. Talvez eu também devesse conhecer o Caribe…

“A Infraero informa…”. Pronto, sou retirada do meu mundo de simulações pela voz metálica da moça da Infraero. Eu adoro tudo que a Infraero informa. O tráfico de aviões, os atrasos, as chegadas antecipadas, as trocas de portões de embarque – ainda que eu nunca escute os avisos quando deveria. Esses áudios são musica para os meus ouvidos, mesmo quando em alguns aeroportos eu não entenda tudo que dizem.

Como em Abu-Dabi, quando perdi a versão em inglês do anúncio de que trocaram a minha conexão para a Tailândia e eu quase perdi meu voo, não fosse por uma burca-preta tímida e gentil, que me apontou o telão que anunciava a informação. “Como se vai de burca para a Tailândia?”, pensava enquanto nós duas corríamos para o portão certo. Ou da vez que anunciaram em um belíssimo italiano que o aeroporto fechava durante a madrugada, e eu tive que dormir no meu saco de dormir no chão, junto as minhas amigas aranhas, sem ter como sair do recinto para um lugar mais confortável. No fundo eu estava em casa, dentro de um aeroporto. Entre a Roma e Istambul, o que eu tinha para reclamar (além as aranhas…)?

Gosto da expectativa inebriante destes saguões.  Encaro os telões cheios de voos separados apenas por alguns minutos, que chegam de todas as partes do mundo. Penso nos céus que cruzam, nos oceanos que sobrevoam. Faço uma lista mental de onde eu iria se não me sobrassem responsabilidades e me faltassem dólares, euros, yuans. Meu estômago pula, cada vez que os letreiros trocam números de voos e destinos. Penso nos aeroportos que já receberam a minha alegria, o meu cansaço, o meu atraso, e de que não existe pior sensação no mundo do que chegar atrasado em um aeroporto, e ficar pra trás em Barcelona. Bem, isso até descobrir um boteco que servia sangrias baratas até o próximo voo (caríssimo) disponível. Eu adoro aeroporto.

E de aeroporto em aeroporto, eu faço planos infalíveis de dominação do globo. De juntar milhas com a mesma euforia de quem junta horas na fila do scanner. Eu sempre temo ter esquecido um líquido sagrado na mochila, que possivelmente terá de ficar ao lado da máquina de raio-x para descarte, até me lembrar que eu gasto os meus bocados muito mais com drinks do que com cremes caros. Eu me tremelico toda nas conferencias de passaporte. Já esqueci meu próprio nome em duas ocasiões distintas (talvez eu deva escrevê-lo na minha mão, na próxima). Eu sempre acho que vou ser confundida com uma prostituta em Madrid, uma traficante em Paris, confundida por sóbria demais para a Escócia, ou vítima da Ebola na saída da Johanesburgo. E eu nunca fiquei mais que 7 perguntas e alguns minutos suando frio nestes interrogatórios. É a síndrome do “não vou passar do aeroporto”. Ainda que eu adore aeroporto.

Adoro os pátios de aeroporto. Do cheiro de aventura. Cheio de aventura misturada com gasolina de aviação. Eu nunca liguei para carros, mas sou bem Maria-Gasolina-de-Aviação. É meu perfume favorito. Adoro o barulho vibratório de turbinas. O vento bagunçando o meu cabelo entre a sala de espera e um avião.  A sensação de inquietude que me causa. E se o vento faz voar um avião, imagina o que faz com as borboletas da minha barriga.  Elas voam, voam, voam, sem precisar de carona de boeing ou airbus algum.

Aeroportos me tiram do meu fuso. Quero abordar turistas e interroga-los em inglês, apenas pelo prazer que sinto do idioma dançando na minha língua. Eu me abalo cada vez que me despeço de alguém nele, nem que seja a minha mãe visitando a minha vó – abraço-a como se ela fosse cruzar o Atlântico – e a minha vó mora em Uberlândia. É culpa do aeroporto. Encaro sem vergonha os beijos apaixonados de casais recém juntados por uma conexão. Tenho vontade de abraçar famílias que nem conheço, quando recebem seus entes queridos com faixas, balões e buzinas. Celebro o reencontro deles dentro da minha cabeça, segurando a vontade maluca de me jogar junto no montinho de abraços desconhecidos. Ali, naquele desembarque onde tantas vezes o meu irmão me esperou na porta, com sua cara de sono,  o Django no colo e sorriso receptivo.  Onde me despedi de tanta gente, e reencontrei as melhores amigas do mundo.  Eu adoro aeroporto. São inícios, são meios, são fins.

Aeroporto é minha praia. Meu imaginário construído sobre concreto e asas. Ahhh são meus pés no chão e a cabeça no céu. Aeroporto é a confirmação em matéria física de que tudo é transitório, passageiro. Passageiro, sabe,  assim como você e eu.

Fim da sessão.


– “Oi filha! Tá aqui há muito tempo me esperando?”

– “Não mãe, cheguei às 11h.”

– “Mas eu te disse que o voo chegava só às 12h45.”

– “Não te preocupa, mãe. Eu tava aqui viajando.”

– “E esse cartaz?” – referindo-se a folha de papel branco com os dizeres “BEM-VINDA, MAMÃE” que eu segurava em frente ao portão de desembarque.

– “Eu gosto de celebrar reencontros.”

Ela me olha confusa – “Mas filha, eu fiquei menos de uma semana fora.”

– “Ah, mãe. Eu adoro aeroporto.”

Antônia no Divã

Uma questionadora fervorosa das regras da vida. Viajante viciada em processo de recuperação. Entusiasta da escrita. Uma garota no divã figurado e literal. Autora do blog antonianodiva.com.br.

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