Categories: Gustl Rosenkranz

O dia em que ela partiu…

A mãe que resolveu não esperar mais para começar a ser feliz…

Ainda era escuro quando ela acordou. Sentou-se na cama e pensou que gostaria de dormir mais um pouco naquele domingo, mas não podia. Era Dia das Mães, os filhos viriam almoçar e havia muito para fazer. Cansada e desanimada, olhou para o marido, que dormia profundo e roncava alto. Nos finais de semana, ele sempre dormia até mais tarde, argumentando que precisava descansar do trabalho e de ter de levantar cedo nos dias de semana. Mas, e ela? Não levantava mais cedo que ele para preparar seu desjejum? E então, quando descansaria? Pensando nisso, ela levantou-se e foi para o banheiro, tentando não fazer muito barulho para não acordar nem o marido, nem o filho mais novo, que ainda vivia com eles.

Enquanto o café passava pela máquina, ela saiu para ir à feira, pois sabia que tinha de ir cedo, já que muitas famílias com certeza queriam comer peixe naquele dia e não encontraria mais nenhum que prestasse se fosse mais tarde. Ela caminhava devagar e recordava-se da última noite, que passou praticamente acordada, sentindo uma insatisfação que não sabia explicar. E pensava no ronco do marido, aquele ronco maldito que já lhe atrapalhava o sono há 35 anos, mas que ela suportou sem reclamar, pois nunca reclamava de nada. E lembrou-se do artigo que havia lido no dia anterior em um site que acompanhava na internet, daquele texto que havia mexido tanto com ela. “O que você está esperando para começar a ser feliz?”, perguntava o autor. E, agora, ela se perguntava o mesmo, ela, que passara toda a vida esperando a vida começar, que vivera até então uma vida tranquila, sem que nada lhe faltasse em termos materiais, criando três filhos, uma filha e inúmeros cachorros, que se dedicara à família, funcionando como se esperava dela, sendo mãe e esposa perfeita, impecável, boa dona de casa, boa cozinheira, boa faxineira, mas que nunca fora realmente feliz.

Inúmeras vezes ela tinha pensado em ir embora, para qualquer canto, e começar de novo, experimentar coisas novas e descobrir o que realmente a faria feliz, mas nunca tivera coragem, na verdade nem achava que teria esse direito, já que era mãe e tinha que cuidar dos filhos, já que era casada e tinha que cuidar do marido. Mas agora os filhos já estavam grandes e o marido já tinha deixado de ser marido há muito tempo. O que ela estava esperando então? Poderia ir embora, mas para onde? Essa incerteza lhe causava medo, mas, bem lá do fundo de sua alma, ela sabia que seu medo maior era o de nunca mais conseguir sair de onde estava, de nunca conseguir começar a ser feliz.

Mas como ela podia pensar tudo aquilo? Não estaria sendo ingrata? Não estaria sendo egoísta? Não teria ela tido sorte, filhos saudáveis e também muitos momentos felizes vividos em mais de três décadas de casamento? Pois, então, de onde vinha aquela insatisfação e aquele sentimento de infelicidade? Ela concluiu que deveria ser mero cansaço, comprou o peixe e voltou para casa tentando pensar em outras coisas, como em tudo que ainda tinha para resolver até os filhos chegarem para almoçar.

Foi recepcionada em casa pelos cachorros, que se alegraram tanto com sua chegada que parecia que ela tinha viajado por vários dias. Mas eles eram assim mesmo, os cachorros, sempre alegres, sempre gratos, sempre ali… Como ela? Novamente foi tomada por aquele sentimento, o sentimento de que faltava alguma coisa. “O que você está esperando para começar a ser feliz?”. Essa pergunta a perseguia, a acompanhava e girava em sua cabeça, querendo ser escutada, querendo ser refletida, querendo ser respondida. Distraída e ocupada com aquela insatisfação que não sabia explicar, entrou em casa pela sala e não percebeu que a sacola plástica que recebeu na feira estava furada, deixando um rastro de “água de peixe” por onde passava.

Ela escutou um barulho no quarto e, para sua surpresa, o marido já havia levantado. Ele veio para a sala, viu o chão molhado e entrou na cozinha perguntando à mulher que água seria aquela. Ela, sem entender, foi à sala para ver, lembrou-se do peixe e explicou ao marido o que havia acontecido. O marido desesperou-se, ficou zangado, disse-lhe que não entendia como ela podia fazer tamanha bobagem, que aquilo ali logo iria começar a cheirar mal e exigiu que ela limpasse de imediato, saindo em seguida para o quintal, bufando e xingando os cachorros. Ela pegou um balde e um pano, limpou o chão da sala e da cozinha, colocou o café da manhã do marido na mesa e voltou para a pia, onde começou a tratar o peixe e a preparar o almoço. “O que você está esperando para começar a ser feliz?”, recordou-se e sentiu novamente aquela insatisfação, mas dessa vez começava a entendê-la.

O marido entrou em casa, comeu e foi depois para a garagem montar o rádio novo que havia comprado para o carro. Quando ele passou por ela com o rádio na mão, ela entendeu porque ele havia levantado tão cedo: para instalar seu rádio sossegado. Na verdade, ele não gostava de receber visita do filho mais velho, pois ele sempre trazia os netos, que, em sua opinião, eram crianças mal-educadas, que não aprenderam a respeitar limites. O engraçado, pensava ela, é que o marido agia de forma totalmente diferente do que falava, mimando os netos assim que chegavam, os defendendo e se intrometendo em sua educação, assim que os pais tentavam lhes impor qualquer limite.

Dos próprios filhos ele nunca cuidara. Não se poderia dizer que ele tenha feito algo de errado, pois, na realidade, nunca fez foi nada pelos filhos, exceto financiar casa e comida. Foi um pai ausente, que estava pouco em casa e, quando estava, sempre queria seu sossego. E, assim, foi ela que teve de cuidar dos filhos, tomando decisões sozinha, desejando apoio do marido nos momentos mais difíceis, mas sem nunca o receber, só escutando suas reclamações sempre que alguma coisa no comportamento da cria o incomodava. Ao pensar nisso, ela foi tomada por uma grande tristeza. Entretanto, o que mais a deixava triste nem era tanto sua ausência na vida dos filhos, mas a forma como ele se dedicava ao filho que teve com sua amante. Desse filho ele só falava bem, tão bem que ela tinha a impressão de que ele estava cá, mas seu desejo era o de estar lá, com o filho e com a amante, da qual ele dizia ter se separado, mas ela sabia muito bem que continuavam se encontrando. Sim, ela sabia, mas nunca reclamou, pois ela nunca reclamava de nada. Era infeliz, mas não reclamava.

Eles tinham casado cedo. Na verdade, ele nunca foi seu grande amor. Eles começaram a namorar quando ela tinha 17 anos e pouco meses depois ela engravidou. Naquela época, não havia escolha: engravidou, tinha que casar e pronto. Tanto ela como o marido vinham de famílias totalmente patriarcais e igualmente patriarcal foi a vida deles durante todos esses anos. Ela, como mãe, estava ali para servir ao marido, aos filhos, a todos…

Já havia passado das onze horas quando Rafael, o filho mais novo, acordou e chegou à cozinha mexendo no smartphone e querendo comer. Ela estava arrumando a mesa grande para o almoço, mas parou o que estava fazendo para satisfazer a fome do marmanjo. Enquanto isso, o marido entrou em casa, dizendo que ia tomar banho, desaparecendo para o quarto. Logo em seguida, chegou Maurício, o filho mais velho, com a esposa e o casal de filhos. A menina carregava um buquê de flores, enquanto Maurício tinha um pacote quadrado embaixo do braço. Os netos abraçaram a avó e a garota lhe entregou as flores. Por um momento, ela se sentiu feliz e confortada, tendo até vergonha dos pensamentos que lhe passavam pela cabeça. Logo depois, Maurício e a esposa lhe entregaram o pacote. O filho, orgulhoso do próprio presente, deu pressa, pedindo para a mãe abrir logo. Ao remover o papel de presente, ela leu claramente na embalagem “Liquidificador Oster 4655 Cromado 600W”. Mesmo sem entender para que mais um liquidificador, já que havia dois funcionando bem dentro de casa, ela sorriu desconcertada e agradeceu.

Rafael, que comia sem tirar os olhos do telefone, perguntou o motivo daqueles presentes. A mãe teria aniversário? A cunhada lhe explicou que era Dia das Mães e ele, sem mostrar real interesse, gritou para a genitora um “feliz Dia das Mães, mãe!” desbotado, retornando imediatamente sua atenção para o celular.

Nesse meio tempo, chegou a filha Daniela, com um recado de Marcelo, o irmão que faltava, que não iria vir por estar com uma gripe forte. A mãe sabia bem que esse não era o motivo, mas somente uma desculpa mentirosa, e que ele não viria por estar brigado com o pai, a quem havia pedido dinheiro para comprar um carro novo, pedido que fora categoricamente recusado pelo patriarca com a justificativa de que o filho não precisava de carro novo, mas sim de vergonha na cara.

Com o pai já de volta na sala, começaram a almoçar, não demorando muito para que o marido começasse a brigar com Rafael por causa do telefone, que não parava de vibrar e fazer ruídos, com Maurício apoiando o pai e sua esposa pedindo para que ele não se intrometesse na história. Logo começou uma discussão séria, com o pai chamando o filho mais novo de vagabundo maconheiro, que já tinha 25 anos, não trabalhava, nunca concluía os estudos e só servia para “mamar nas tetas dos pais”. Quando Rafael deu uma resposta malcriada ao pai, esse se alterou ainda mais, deu um tapa na mesa e um grito no filho. Assustados, os netos começaram a chorar. Rafael levantou-se da mesa e foi para o quarto e o resto da família continuou comendo calado, no meio dos soluços das crianças, que eram consoladas pela mãe.

Depois do almoço, o pai ligou a televisão e deitou-se no sofá, Daniela foi embora dizendo que tinha um compromisso e Maurício saiu da cozinha com quatro bananas nas mãos, pedindo à mãe para fazer uma vitamina. A mãe achou aquilo estranho e perguntou se ele ainda estava com fome, ficando pasma com a resposta: “Não, eu só queria ver o liquidificador que lhe dei funcionando!”. Ela olhou para o filho e, nesse momento, pensou mais uma vez sobre “o que ela estaria esperando”. Ela entrou na cozinha, pegou o liquidificador e o entregou ao filho, dizendo que ele mesmo batesse suas bananas, indo em seguida para o quarto, trancando-se lá dentro por um instante.

Ao voltar para a sala um pouco depois, Maurício havia desembalado o liquidificador e admirava o presente que havia comprado, sua esposa cuidava das crianças, enquanto o marido roncava no sofá. Ela ficou parada na porta da casa, observando os cachorros e as plantas, mas, na verdade, sem olhar para lugar algum, sentindo cada vez mais forte aquela insatisfação e com aquela pergunta dando reviravoltas em sua cabeça:

“O que você está esperando para começar a ser feliz?“

Ela saiu para o jardim e começou a remover folhas secas das plantas, calada, conversando por dentro consigo mesma. “O que você está esperando para começar a ser feliz?“, perguntava-se sempre novamente. Estava ali, perdida em pensamentos e tentando encontrar a si mesma, quando escutou a voz do marido reclamando que a mesa ainda não tinha sido tirada e que a cozinha estava uma bagunça. Ele a chamou. Ela entrou em casa e quando ele perguntou se ela achava que era ele, o pobre coitado que trabalhou a semana toda, que deveria ir para a cozinha fazer o trabalho que era obrigação dela, ela nada disse, olhou sério para ele e foi para o quarto, pegou a mala que tinha feito após o almoço, quando se trancou por um instante, voltou para a sala e disse para o marido que não iria esperar mais e que iria embora.

O marido a olhou primeiro perplexo, mas depois começou a rir alto, perguntando se ela estava ficando louca, com Maurício apoiando novamente o pai, sua esposa pedindo para ele não se intrometer e as crianças mirando a cena sem entender nada. Ela ficou ainda parada por um momento na sala, olhando sério para o marido, dando, em seguida, um beijo em cada um dos netos e caminhando com a mala para o portão, sem olhar para trás, registrando os xingamentos do marido, que a cada passo que dava ficavam mais distantes. Em sua cabeça tinha somente um pensamento: “Eu não vou esperar mais!”.

Gustl Rosenkranz

Blogueiro brasileiro residente em Berlim.

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  • Oi, me senti um pouco essa mulher quando li essa estoria, com a diferença que nao tenho marido e os problemas de meus dois filhos adolescentes diferem pouca coisa dos filhos da pessoa da estória, e tambem acho que sei o que me impede de ser feliz ainda.

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Gustl Rosenkranz

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