Às vezes, eu nem existo.
Sou uma reprodução do que vejo e escuto. Acompanho passos, acelero ritmo, diminuo ritmo. Mera projeção. Sou apenas um rosto perdido no meio de tantos outros. Sou um corpo jogado em uma montanha de corpos idênticos. Amarrotada, sufocada debaixo de muitos e sufocando tantos outros abaixo de mim.
Ando em bando e não sou vista. Mas, também não vejo ninguém. Só enxergo um grupo aglomerado se locomovendo para cá e para lá. Como cardume de peixe. Nenhum é especial. Fazem os mesmos movimentos, têm a mesma face. Quem somos nós senão a cópia de nós mesmos?
Dentro de casa sou tão grande. Alcanço a parte de cima da prateleira, tenho um lugar para chamar de meu e um endereço para voltar toda noite. Porém, é só me afastar um pouco no ninho que vejo o quão pequena sou perto da imensidão do céu. Minhas asas não conseguem alçar voos tão altos. Sou frágil, sou limitada. Não tenho fôlego para aguentar longas viagens. Sou só mais uma. Sou pequena.
Eu me resumo a um ponto. Massa desprezível. Moro dentro de uma imensidão. Sou nada. Eu ando com a cabeça erguida e peito estufado, mas me pergunto o porquê de me mostrar tão majestosa se vista de cima sou menos que uma ponta de agulha. Passamos tanto tempo nos diferenciando, mostrando nossa exclusividade, mas eu sou você.
Tem você na minha pele. Somos poeiras. Eu habito em cada parte de você e tem você grudado em mim. Somos os mesmos porque somos a mesma massa deslizante. Não existimos. Isso é o que mais tempos em comum.
Cada dia avançado e vivido é um dia a menos, de tão vasta que é a nossa invalidez de nos prolongarmos e sermos vistos. Somos um calendário. Cada um com o seu próprio “x” já marcado e definido. E ainda sim, ainda que saibamos de toda a nossa incapacidade de fixação no tempo/espaço, usamos nossos dias miseráveis para pisar em pessoas. Tentativa falha de nos engrandecermos, quando na verdade: somos nada.
Às vezes, eu não existo. Digo isso, pois olho para frente e minha visão não consegue chegar até o fim. Porque, afinal, não tem fim. A eternidade está descrita no infinito. Só eu tenho fim, só eu e você estamos andando na nossa linha até alcançar o final. Mas o resto estará aqui, bem como esteve antes e continuará. E vai continuar sendo o palco de tantos outros desprezíveis e pequenos como eu e você. Nós vamos só assistir a um show e sair de um espetáculo que durará para sempre.
Somos pouco. Somos só isso e somos menos ainda.
Por isso é sempre bom olhar para o céu. Para o horizonte. Lembrar que somos poeiras ao vento e voamos tão rápido e acabamos tão rápido que quase não dá tempo de fazer história. Porque não existimos. Não em comparação ao quanto o mundo irá existir. Sou passageira. Sou passante. Tenho linha de chegada. Eu já nasci com data de saída. Já nasci para não ser ninguém e sumir igual fumaça. Entrei aqui para não ser vista.
Meus dias são poucos, meus dias são nada. Preciso dar eternidade a eles enquanto durarem. Preciso marcar minha lembrança para enquanto eu for alguém, eu souber que parte de mim ficou. Parte da minha vida inexistente – e do meu rosto como qualquer outro e do meu corpo jogado na multidão – ficou ali no chão. Na parede. No meio dessa bagunça. Qualquer lugar, menos em lugar nenhum.
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