Por Mariana Morais
De certa vez conversando com uma amiga que há muito não via, a história da crise dos vinte anos apareceu certeira e puxamos logo duas cadeiras pra atualizar dos acontecimentos. As discussões giraram em torno de faculdade, falta de dinheiro, estresse, gastrite, cirurgias de urgência, problemas familiares – vários petiscos comuns dos relatos de jovens com vinte e poucos anos. Mas talvez de todas, a mais gritante das conclusões foi termos percebido o quão estávamos anestesiadas para emoções que outrora nos abalaram pungentemente os sentidos.
Parece-me cada vez mais que a vida adulta faz isso mesmo: nos adormece.
Há uns poucos dois anos eu me preocupava com sutis detalhes da rotina, com a profundidade de quem vê a vida sempre sob sol, ainda que algumas nuvens pudessem arrefecer o encanto do universo. Na ida à escola, costumava observar os pedestres, as pessoas de boa disposição que acordavam cedinho pra ir à padaria, praticar exercícios ou frequentar seus cursos de línguas. Descendo a pé, notava o geladinho do vento quando dobrava a mesma esquina qual dava de cara com o moço do churros, que arrumava sua barraca para as primeiras vendas do dia.
Além disso, meu corpo parecia lidar muitíssimo bem com o que eu comia o dia inteiro. A última coisa com a qual me preocupava era exatamente o que engolia; o biscoito no lanche e o almoço dividido com as colegas, até o doce de sobremesa não parecia me afetar nem um pouco: os cinquenta e seis quilos continuavam lá, o mundo parecia dar muito de graça e as horas passavam nuas sem necessidade de se travestirem nalguma esperança tenra para que a vida pudesse galgar mais fácil.
De último, até mesmo minha mente era uma miudeza fresquinha (não que eu não tivesse crises adolescentes, e choros contavam-se aos montes, coisa que hoje pouco faço quando àquele tempo comparo) daquelas que se encontra na feira livre, suave feito algodão doce, cheia de esperanças, excitada pela novidade, repleta de atividade como olhos bem abertos, ouvidos que viram o próprio mundo, garganta que seca apenas de vontade de viajar naquela excursão com as amigas queridas. Podiam pintar um papel de parede verde vivo com uma quantidade grande de samambaias e dizer que aquilo era minha mente. Descansava anil que nem quando a gente bóia em uma piscina, pois no fim das contas, minhas inseguranças não se travestiam da cólera da vetustez, mas apenas de ainda mais vontade de viver.
Porém, no auge da crise dos vinte, a coisa verde foi ficando escondida nas beiras do tempo. Nem faz tanto tempo assim – minha amiga comigo pensava – mas é incrível como a transição entre a adolescência e a vida adulta tem um poder tão miserável sobre aqueles que experimentam a metamorfose. Detalhes cotidianos se perderam em meio a um tempo que corre cada vez mais feroz, difícil de agarrar com as duas mãos, e cada precioso minuto do andar de ponteiros passou a fazer uma diferença danada no fim das contas. Contas. Contar era algo tão demodé no auge da brancura juvenil dos meus dias de terceiranista (exceto pela matemática decorada pra passar no processo vestibular).
Planilhas e quadros de organização de rotina passaram a ser meus capitães, posto quando meu peso aumentou e se tornou incômodo; assim como a queda de cabelos, os problemas estomacais, a celulite, as dores de cabeça, as crises de medo e de ansiedade, isso misturado à necessidade corrente de ter de saber lidar com absolutamente tudo, se manter sólido, estável, rígido, responsável e guardar fôlego pra enfrentar a pressão acadêmica e social ao máximo. Ganhar dinheiro nunca foi tanta prioridade. Olhar pro mundo e se sentir sozinho, muito mais sozinho do que se pensa.
Na beira das duas décadas, a caixinha cor de rosa com cartinhas e lembranças dos amigos que vive guardada em baixo do meu guarda roupa na casa dos meus pais parece ser tudo aquilo que um dia já foi chamado de eu resumido em algumas lembranças, que nem aquele pequeno baú da Amélie Poulain. O céu foi ficando mais distante, o geladinho do vento e o encanto de perceber carros e pessoas trafegando com vidas latentes lá dentro viraram pressa e o relógio que não para de correr enquanto posso perder o ônibus e ter de esperar mais trinta minutos em uma parada. Estudar pra concursos, estudar pra faculdade, estudar pra ser culta, estudar pra estudar. Ler qualquer outra coisa que não seja acadêmica parece um daqueles diabinhos que ficam no ombro do Pica-Pau orientando pra que ele siga o caminho errado. Tempo é dinheiro. Dinheiro é tudo.
Parece até – entre os goles nos nossos sucos, dizia – que o verde foi ficando cinza. Apagaram tudo, tudo, tudo. Pessoas cinzentas levando vidas cinzentas, será que fazer vinte anos é como se te colocassem em um quintal e como num ritual de passagem, te jogassem uma tinta escura? Penso que sim. Fazer vinte anos, entrar na faculdade de Direito, ter que ter um futuro brilhante e um presente tranquilo e sólido. Engraçado como as coisas são, não estamos preparados, a vida apenas vai e pimba! Joga a gente no mar dos leões. A faculdade parece ser um pequeno esboço do que é a cova de Daniel, e só estamos sendo amadurecidos pra sermos jogados na boca dos felinos o mais rápido que o mercado de trabalho possa cumprir.
“Minha querida” – enunciava a dermatologista – “você agora tem vinte anos. A quantidade de cabelos vai diminuir. Seu metabolismo também já não é o mesmo. Acostuma!”. Como pode acostumar? Olhar no espelho, ver um corpo que não parece com você, uma pessoa que já não responde mais pelo seu nome. Crescer é difícil, a vida adulta engole os poetas. É uma fagocitose necessária pra que quedemos mais espertos e para que, enfim, sobrevivamos. Diria Darwin que é o princípio do significado das coisas naturais. Diria Buda que graças ao ego – esse mesminho, o ansioso febril – estamos vivos e podemos notar que existem seres humanos sobre a Terra, já que inúmeros obstáculos tiveram de ser vencidos, e nada como a obstinação por sobreviver e a força de levantar os punhos e, de vez, lutar para que as coisas estejam no lugar.
“O nosso corpo parece que fala, né?” Eu brincava. O meu corpo, parece que ele simplesmente não responde mais a certos estímulos. Prefere ficar quietinho. Certas situações não são mais tão difíceis; pagar contas, resolver burocracias, enfrentar responsabilidades são aprendidas sem que ao menos se sinta. Não há muito tempo para agradecer pelos méritos (ou será que os méritos ficam guardados às conquistas grandes demais?). O fato é que parece-me que paralisa, que estanca. Parece-me que a crise dos vinte anos é uma tela cinzenta de desesperos que não se coaduna mais com a euforia verde da adolescência, porque os gritos são um tanto calmos e silentes. Eles doem, mas a classe da obrigação da maturidade impede que os fios se desvencilhem de vez do feixe.
É cinza, cor fria, não tão imaginativa, e um tanto sóbria. Com o perdão do termo, adultescentes. Crianças choronas que têm medo de enfrentar responsabilidades mas que noutro dia estão vestidinhas com suas roupas sociais mal passadas por si mesmos pra encarar horas de estágio ou primeiros trabalhos.
É difícil. É, sobretudo, muitíssimo difícil. Aos dezesseis, eu (inevitável alma poética) vivia aos prantos por uma nota escolar baixa ou por relacionamentos familiares complicados. A minha alma parecia pulsante, era sensível como uma bolha de sabão dançando no ar quando uma abelhinha cruza seu caminho – qualquer sombra do cotidiano e splish! Ondas de emoção e ardor de sentimentos por todos os lados. Hoje, parece-me que a alma está apenas em constante movimento, estabilizada por alguma força maior, o que não impede que a poesia desabe em lágrima vez em quando testemunhando que, corada, minha sensibilidade sobrevive.
Mas é o lado que a gente tem que admitir. Talvez pra que possamos colher o melhor que há da vida e tornemos a ver o verde florescer do asfalto cinza (qual a rosa de Drummond) precisemos nos vestir do tormento sem cor, pra que os parâmetros passem a alcançar o cume da nossa maturidade. Acredito que só conseguiremos enxergar beleza em muitas das coisas simples e tornemos a ver com olhos de pirata tesouros que se escondem nas margens do cotidiano de gravata se subirmos à montanha dos adultos, e possamos nos reconhecer enquanto tais, olhar nos olhos de cada um e experimentar aquilo que todos eles têm no fundo.
Só assim o misticismo que envolve envelhecer é quebrado pela própria ironia que há em começar a enxergar que adultos não sabem de tudo, e que só estamos tentando o tempo inteiro. Adultos em verdade são aquelas mesmas crianças que passam na esquina dos churros e sentem falta do colo da mãe. Só que eles são crianças birrentas que brigam na hora do trânsito, e esquecem que outrora não teriam a mínima vontade de se estressar com coisas tão ridículas que atormentam a vida corrida de quem não tem tempo pro mundo verde.
Porém, o poeta – esse adulto infame que na alma carrega uma criança verde – ah, o poeta sofre muito mais ao achar que perdeu a esperança que um dia lhe deu substância. A crise dos vinte pode ser o inferno para aqueles que amam ver a vida toda esmeraldina. Mas um dia, pra falar com aqueles grandes indivíduos de terno cinza, o poeta precisou se pintar também de cinza, e fazer com que os outros adultos percebam que a vida, no fim de todas as contas, pagas ou vincendas, pulsa: viçosa, virente. Apenas não deixemos que a frieza dos dias nos faça esquecer de que ao fim de tudo, o silêncio de um abraço e a doçura de uma surpresa de fim de semana nunca vai parar de nos inebriar (seja com vinte, trinta, quarenta ou cem anos de idade). A vida, verdinha igual a manga espada, ri de nossa cara quando percebe o quão somos tolos por não enxergarmos que até mesmo o mais frio de todos os homens se apaixona, embasbaca e sucumbe ao amor.
Clorofile-se.
Para ler mais da autora acesse Obvious – Tertúlias
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