É de Joseph Campbell uma das definições mais belas de mitologia. Para ele a mitologia é a canção do universo, música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.
A mitologia se expressa através dos mitos e como mitos podemos descrever aquilo que os seres humanos têm em comum, histórias da nossa busca pela verdade, sentido e significação, através dos tempos. São metáforas que falam da alma humana.
E mesmo que nós não estejamos tão ligados ao que trata a mitologia e seus símbolos, eles nos chegam de várias maneiras. A arte, por exemplo, é uma ótima forma de dedilhar a mitologia e sua significação e o cinema não foge a essa regra.
Muitos filmes têm retratado a Grécia de forma categórica atualmente, mas existem outros, a meu ver mais interessantes, que tratam da mitologia de forma mais velada. E não importa se a mitologia fala de deuses e deusas ou de aspectos que lembram um outro tempo. As vivências humanas parecem seguir padrões comuns no decorrer dos séculos.
Vou falar a seguir um pouquinho sobre um dos filmes mais emblemáticos da década de 90, um filme muito interessante e subjetivo que utiliza aspectos mitológicos em sua concepção: O Piano.
O Piano – de Jane Campion – 1993
O filme O Piano, se passa em 1850 e narra da história de uma mulher, Ada, que vai para Nova Zelândia a fim de concretizar um casamento arranjado pelo pai. Ada não fala desde os 06 anos de idade e ninguém sabe a razão disso. No entanto, ela se expressa ao mundo através de seu piano e também de sua filha pequena que, por vezes, faz no filme o papel de alter ego de Ada.
O Piano é um dos filmes mais delicados e profundos que já assisti. Se Carl Gustav Jung estivesse vivo, esse filme o encantaria por certo, pois Ada e o piano se ligam lindamente em uma simbiose que remete diretamente ao inconsciente.
No que diz respeito à mitologia grega, Ada se assemelha à figura de Perséfone, uma deusa dividida entre o mundo da luz e o da escuridão. O mito diz que ao se debruçar para colher um narciso, Perséfone, que nesse momento em sua pureza se chamava Coré, foi sequestrada por Hades, o deus do mundo inferior e levada para o subterrâneo. Muito triste a mãe de Perséfone, Deméter, conseguiu fazer com que a filha passasse alguns meses ao lado dela e outros incontestavelmente ao lado de Hades. Isso porque, de acordo com o mito, Perséfone alimentou-se no subterrâneo com sementes de romã e isso a ligou a esse mundo para sempre, fazendo com que vivesse nos dois mundos.
Ada teve seu casamento arranjado pelo pai que a mandou para a Nova Zelândia, uma terra bastante inóspita no período. Chegando lá o marido decidiu levar todos os pertences de Ada para casa, menos o piano. Dessa forma ele nega-lhe sua principal fonte de inspiração e expressão e de forma displicente impede, temporariamente, que Ada acesse seu mundo interior. Lembremos que Ada já vinha se declinando mais ao mundo inconsciente que ao consciente, na medida em que, sem falar, se mantinha de certa forma inacessível aos que a cercavam.
Desde os 6 anos de idade Ada vivia intimamente ligada ao seu inconsciente e só conseguiam se aproximar dela os que mergulhavam em seu mundo interior através da música. Em certo momento uma das mulheres da vila relata que a música tocada por Ada era estranha, como se não fosse apenas uma melodia. Sim, não o era. Era Ada falando pro mundo de outras formas.
No filme Ada tem seu piano vendido então pelo marido a George Baines, um homem que apesar de estrangeiro consegue entender e falar a língua dos nativos. Baines, no entanto não pretende ficar com a voz de Ada para si e dá-lhe a chance de tocar para ele em “aulas” que o encantam e o levam a se apaixonar ainda mais por ela. Ele também propõe que Ada resgate sua voz (o piano) através da interação que ambos passam a ter durante as “aulas”.
Nesse momento Baines se assemelha muito ao deus Hades, pois metaforicamente sequestra Ada, mantendo-a junto dele, já que, uma vez com o piano dela, sabe que Ada não conseguirá ficar muito longe. Como Hades ele a mantém em seu reduto por amor. Baines se assemelha também ao deus do subterrâneo em outros aspectos: Hades era um deus solitário, que se apaixonou loucamente por uma mulher de outro plano, uma mulher de certa forma proibida e que para tê-la subverteu regras, conquistando-a enfim e fazendo dela uma deusa poderosa.
Baines acessa muito bem o inconsciente de Ada e o compreende, mas entende que ela deve ser completa, também admirável quando no mundo consciente. Ele quer que ela seja plena nos dois mundos, falando em um pelo piano e no outro através da própria voz. Baines de certa forma compreende que Ada está irremediavelmente ligada ao mundo inconsciente, por razões não explicadas no filme. Não sabemos quais foram as sementes de romã que a fizeram se calar na infância.
Mais do que desejo, sim pois esse poderia ser o tema principal desse filme belíssimo, cuja trilha sonora memorável tem a música tema intitulada “The heart asks the pleasure first”, O Piano fala da busca do equilíbrio entre o mundo interior e exterior. Baines traz Ada de volta ao consciente, mas permite que ela continue acessando seu inconsciente através do piano. Ele não lhe nega a subjetividade. Nesse ponto Baines demonstra seu amor por Ada, pois a aceita como é, admirando-a, mas a incita para o melhor.
Quando Ada sai da Nova Zelândia, levando consigo seu piano e precisa se desfazer dele nas águas revoltas do mar para que o barco onde está não afunde, ela tem o ímpeto de se jogar nas águas junto do piano. O mar aí aparece como representação do inconsciente. Mas ela entende que não deseja viver só nele e volta atrás.
Também não posso deixar de falar que a deusa Perséfone foi descrita de acordo com o poeta greco-romano Opiano de Apameia como uma mulher de olhos negros e beleza estonteante pela qual muitos homens se apaixonaram. Além do nome do poeta fazer menção direta ao nome do filme, uma coincidência, Ada, cujo nome significa beleza, também tem misteriosos olhos negros e seduz os homens sem esforço.
Representativamente, Perséfone é comumente retratada em um trono de Ébano ao lado do marido Hades. E o ébano é o material do qual eram feitas inicialmente as teclas escuras dos pianos. Esse também é outro detalhe que não pode ser ignorado.
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