Eu sou, sem morrer no acaso, sem fazer cerimônia, sem dormir no ponto, sem esquecer as dores. Eu sou, e antes de pertencer aos conceitos, às regras e situações, sou da minha investigação particular, sou do meu tempo. Sou do ócio, da preguiça e do prazer pelo nada. Sou também da pressa pelo afeto. Do silêncio que reluta em existir. Sou dos outros quando quero e geralmente na hora errada, sou de mim mesma por necessidade da solidão.
Sou dos tempos idos. Do que é relevante, mesmo sendo o amor. Sou de outrora onde a saudade era apenas uma lembrança bonita do passado. E desse tempo saudoso eu sou dos baianos e novos caetanos. Sou do violão afinado. Notícias de liberdade. Sou do tempo em que ser maluco era beleza. Do sol dourado e das coisas do meu país. Sou do Belchior aqui. Sou da voz suave de Nara Leão, Odara, da sorte. Descompostura talentosa de Rita Lee.
Sou de concordar com Almir Sater de que é preciso amor pra poder pulsar, é preciso chuva para florir. Sou Caymmi em sua rede preguiçosa estudando o mar. Sou Toquinho desenhando o mundo em uma folha de papel. Sou Cazuza irreverente, Sou codinome beija-flor. Sou cabeleira e canção do Lulu Santos. Sou a Ópera do Malandro em cartaz. Sou dos mutantes de batas coloridas. Sou a percussão da Timbalada. Sou todas as raças. Sou Tribalistas, Olodum, procissão na avenida principal. Sou de tentar quantas vezes meu fôlego aguentar. Sou de acreditar. Sou da fé no extraordinário. Sou do coração amolecido. Sou do trabalho e da não acomodação. Sou de achar que o homem ainda não tem jeito. Sou das tentativas. Da soleira da porta, cumprimentando os vizinhos e desejar dias melhores. Sou de deitar na relva para ver a lua dourada como ela só.
Sou de dizer não a ser mero expectador da história. Sou de gostar de quem pouco fala, mas muito realiza. Sou de viajar por aí. Sou do Rio a São Paulo, de Brasília a Salvador, a arquitetura, beleza e a generosidade do atlântico que me deu a senha privilegiada de viver aqui. Sou pela consciência, pelo respeito, pela vida. Sou das mãos dadas em torno do homem. Sou do saldo positivo. Sou de trocar o asfalto pelo campo para ouvir o cantar dos pássaros. Sim, eu sou do mato por natureza. Sou da banalidade pela extrema necessidade de desafogar o peso das culpas do mundo moderno.
Sou da floração de primavera. Da aurora tropical. Sou mais de andar a pé do que ônibus lotado. Sou da alma habitada de simplicidade no lugar de espírito empoeirado de mágoas.
Eu sou do mundo e principalmente do meu mundo habitado pela alegria mesmo que passageira. Sou dos atalhos por pressa, sou da ventania por impaciência. Sou do mato por natureza. Sou da banalidade pela extrema necessidade de desafogar as culpas.
Sou de chorar, de sorrir, de cantar o meu canto silencioso e desafinado em qualquer lugar. Sou de Rider. Sair à francesa, administrar a minha liberdade. Sou da nova. Sou de bossa nova na veia. Sou do fone de ouvido no bidê. De não restringir minhas vontades. Sou das campanhas de paz. Sou dos bailes da vida. Sempre fui assim. Sou de caminhar firme. Sou de tocar. Sou de viver. Sou de dispensar controle remoto por causa de um abraço.
Sou de vinte segundos de modernidade e uma eternidade dos velhos tempos. Eu sou porque eu sei que o mundo era melhor no tempo em que eu usava franjas, pulava o muro, brincava com as coisas da vida e tinha medo de lobisomem. Sou do afeto que me destinei. Do meu cotidiano. Sou do dia atarefado. Da noite escura. Do infinito do mar.
Sou da ilusão. Das confusas idas e vindas. Da insistência pela história. Sou de acreditar. De me perder nos romances. De entregas e depois arrependimentos. Sou da saudade dolorida. Das esperas angustiantes.
Sou da minha vasta imaginação. Da sobrevivência. Das tristezas ocasionais. Das perguntas sem respostas. Das respostas sem perguntas.
Sou dos planos sem motivos. Sou de tudo e às vezes do nada. Da fuga por medo. Da razão por obrigação. Da reza por devoção. Da fé por oração. Sou do que valeu a pena. De momentos eternos. Das lembranças. Sou sem vergonha de ser.
Eu sou porque sei lá, Deus decidiu que eu fosse assim.
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