Dona Fernanda é vizinha de minha mãe e se prepara para mudar-se para um asilo.
Nunca se casou nem teve filhos. Está com oitenta anos e teve poliomielite na infância. Os sobrinhos não podem acompanha-la diariamente e, por isso, a opção mais adequada é o asilo.
Depois de passar pelo luto inicial, ela agora se organiza para deixar sua casa e tudo o que ela representa.
Pouco a pouco vai se despedindo dos objetos que compõem sua vida e abrindo mão da independência que tinha para assumir uma nova versão de si mesma, talvez a última.
O mundo de dona Fernanda aos poucos vai morrendo, e ela tem que ser corajosa para permitir que esse mundo se despeça dela antes do fim.
Enquanto somos jovens, recomeçamos inúmeras vezes, e de repente estamos em outro mundo, bem diferente do anterior, sem nos darmos conta disso. Viramos a página e seguimos com novas histórias, paisagens, amigos, amores. Mudamos o corte de cabelo, fazemos um regime, tatuamos uma frase no antebraço, nos apaixonamos por uma banda que ninguém nunca ouviu falar.
O mundo da gente se transforma, mas também morre. E quanto mais velhos somos, maior a sensação de que esse mundo está se despedindo.
Dona Fernanda sabe que essa é provavelmente sua última viagem. Olha as porcelanas na sala de visitas e decide com quem ficará a sopeira pintada à mão que foi presente das bodas de seus pais. Não queria ter que se desfazer de suas memórias, mas sabe que a partir de agora terá que carrega-las somente no pensamento. Nas histórias que contará aos que forem visita-la. Nas conversas que terá com suas companheiras de asilo. Nos sonhos que a acordarão no meio da noite fazendo-a acreditar que ainda está em casa.
Aos poucos tem aprendido a desapegar-se e aceitado seguir com menos bagagem…
Há uma frase de Eliane Brum que diz: “é preciso dar lugar à morte para que a vida possa continuar. É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora.”
Assim, acredito eu, é preciso sepultar nosso mundo que não existe mais, para que a vida flua como um rio abundante, permitindo que o antigo dê lugar ao novo.
Talvez dona Fernanda precise sepultar sua vida anterior para que possa acariciar-se gentilmente daqui pra frente. Para que possa renovar o olhar a si mesma, adoçando com algumas gotas de afeto a relação que tem com a pessoa que se tornou.
Ao perceber que nosso mundo se despede, talvez devêssemos cuidar mais de nós mesmos.
Cuidar de nós mesmos é pisar com delicadeza no solo novo que quer surgir e ser paciente com as plantinhas imaturas que começam a despontar. É regar com carinho as mudinhas recém colhidas e ser grato pela possibilidade de começar um novo jardim.
Que cada um encontre aquilo que acaricia a sua alma, e que o tempo novo traga a esperança de dias regados com tolerância e amor próprio. Que venha o cheiro de café recém coado para nos lembrar que mesmo que a vida recomece o tempo todo, algumas coisas permanecem trazendo conforto independente da dança dos dias. Que venha sabor de comidinha caseira e lençóis limpos sobre a cama. Que venha saudade estampada no porta retrato e motivos para sorrir ao se lembrar daquele sorriso na fotografia. Que haja paz e encontro, fé e aceitação, cuidado e amparo _ na forma de um abraço sincero ou chá de erva doce ao cair da noite.
Torço por dona Fernanda. Em silêncio oro para que aceite sua mudança e acaricie seus pensamentos. Que ela possa continuar caminhando, mesmo que a estrada se apresente mais dura daqui pra frente. Que ela não perca a doçura, ainda que seus dias sejam mais amargos.
E que saiba encontrar recursos para prosseguir, pois o mundo se despede a todo momento, mas a gente tem que continuar…
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O texto trás uma clareza como se quem escreveu já tivesse passado por isso. Mas fica o mérito para a sensibilidade da autora. Quanto a Senhora Fernanda terá que ser uma heroína pra reinventar seus novos dias. Lindo texto: a dura realidade do fim da vida. Sucesso!
Obrigada Carol!!! Grande beijo!
minha mãe não foi para o asilo, aos 88 anos, depois de 50 na mesma casa, veio morar comigo. Fiz sala, quarto, cozinha e banheiro. Trouxe o que lhe era mais caro, mas muito ficou ou foi embora. Fotos e recordações é o que fica. O mundo anda girando muito rapido fica dificil acompanhar....
que bonita sua história Rita! Obrigada por compartilhar! Beijos!!!
Quando as plataformas e os palcos da vida começam a deixar de existir sem que se coloque um outro em seu lugar é o tempo de se voltar pra dentro de sí mesmo , saber quem eu sou, o que eu quero e gosto. sem ficar preso aquilo que se intitucionalizou ser a maneira certa de se viver , porque o mundo lá fora diminuiu , não só fisicamente mas socialmente , afinal o ser humano e de natureza interesseira , portanto o mundo lá fora é cruel com quem não tem nada a oferecer materialmente ou intelectualmente. É a hora de passar necessariamente a gostar de sí mesmo , fazer o que se quer e gosta , buscar novos experiências porque é só atravéz delas que se tem novas idéias , idéias claro voltadas para o nosso e unicamente nosso interesse e passar a gostar de quem gosta da gente .
lindo texto, sou apaixonada por tudo que diz respeito a vida, principalmente esta vida que estou vivendo, onde a solidão é minha principal companheira, precisa ter muito equilíbrio para conviver com estas situações que a vida nos proporciona, precisamos de ajuda
Que texto, Fabíola! Que texto lindo, maravilhoso, tocante. Você mora na minha alma com esse seu dom. Quero muito ser como você no sentido de ter tempo de analisar as coisas e descobrir o mistério da poesia por detrás de cada ato. Que forma linda de falar sobre a vida. Que dom iluminado. Tomara que Dona Fernanda se desprenda da melhor forma das histórias contada pela vida no muro dela, já que viver desse outro lado, sendo jovem até onde der, nesse mundo que nunca cessa já e mais difícil, mas sempre acontece sem aviso prévio. Parabéns pelo seu dom, ele merece ser comemorado! Muita luz para você Fabíola, você é uma fonte rara de inspiração para mim. Abraços.
Querido Bruno, muito obrigada por suas palavras!!! Sua forma de falar e de me enxergar são muito tocantes! Muita luz para você também! Grande beijo!!!
Olá! Como foi bom ler esse texto hoje que acordei com meu coração mais vazio. E tenho gratidão por um texto tão sensível e realista. Eu fiquei com vontade de visitar dona Fernanda no asilo ainda mais por ser formada em psicologia e ajudar, visitar e tornar os seus dias mais doces. Ela está aonde??? Essa história real ou fictícia? Aguardo sua resposta. Meu blog http://www.helenrosa.com / se puder entre em contato comigo bjs Helen
Olá Helen! Acabei de visitar seu blog e gostei muito, delicado e cheio de conteúdo! Parabéns! Quanto à dona Fernanda, ela existe sim, mas este não é o nome dela. Mora em Campinas e ainda está empacotando suas coisas para ir para o asilo. Mas está mais conformada porque vai para uma residência de freiras que ela conheceu no passado. Se quiser conhece-la, me mande um email: fabiolaslopes2012@hotmail.com Beijos!!!
Que texto mais maravilhoso, como escreve, parece que cada palavra tem um coração, eu chorei e me emocionei, como é bom ter gente como você nesta vida, uma terapeuta rsrsrsrs, é suas palavras é uma terapia, agradável, gostosa, e que ajuda muito. Obrigada.
Senti até vontade de dar um abraço na dona Fernanda, rsrsrs .
Bom dia! Voce fez meu dia melhor hoje (de novo!). Que voce continue sendo iluminada e traduzindo sentimentos em palavras, tao lindamente. Deus te abencoe!
Interessante.