A vida é um rio que corre. Nós somos os peixes, galhos e folhas caídas das árvores que essa torrente leva. Se pensarmos assim, imaginando que vamos desaguar no estranho silencioso nebuloso mar chamado morte, que pode não ser o fim de tudo, teremos uma visão realista das etapas da nossa existência. Sou pouco simpática à invenção de rótulos que distorcem realidades revelando apenas um preconceito: envelhecer é feio, é degradante, vamos ser eternamente jovens, seguindo aos pulinhos até o fim, fantasiados de Peter Pan. Disfarçamos realidades naturais porque as vemos como algo feio, inadmissível, pobres de nós, ignorantes do que é normal e digno e bom.
Assim, inventam-se termos para a velhice: um pior do que o outro. “Terceira idade” não significa grande coisa, pois, se podemos viver até 80 ou 90 ainda ativos – (o número de pessoas nessas condições tende a aumentar -, vamos criar uma quarta idade e uma quinta: isso tudo me parece bastante tolo. Pior ainda é chamar a velhice, que alguns consideram se iniciar aos 60, outros aos 70 ou aos 80, de “melhor idade”. Quem disse que é melhor? Melhor do que qual outra fase? Melhor é algo muito subjetivo, em geral nos referimos à infância, mas a infância é sempre feliz? A Juventude não sofre? A maturidade não exige trabalhos e sacrifício?
Por que consideramos a passagem do tempo decadência, e não transformação? Tudo é um processo que se inicia quando somos concebidos, depois somos lançados nesse rio de tantas águas chamado vida. Uma cadeia de mudanças que após um bom tempo traz limitações físicas, menos elasticidade, menos beleza no conceito geral, talvez menos lucidez. Alguma dependência de outros, quem sabe, e, se não cultivamos bons afetos, isso pode ser doloroso. Mas não necessariamente decrepitude e vergonha a esconder!Todas essas naturais transformações deveriam vir acompanhadas de qualidades que na juventude não tínhamos. Capacidade de amar melhor, por exemplo: filhos criados, amizades consolidadas, velhos casamentos sendo uma parceria tranquila, e tempo disponível, são grandes privilégios. Podemos amar com mais alegria, pois não precisamos educar netos, apenas curtir, querer bem, deixar que gostem de nossa companhia, não sendo os chatos cobradores, exigentes a reclamar que as visitas são poucas, que merecíamos mais atenção. Temos tempo para curtir coisas que passavam despercebidas na correria anterior, como uma bela paisagem, um bom filme, um bom livro, uma boa conversa, doces memórias, não pensando no que perdemos, mas no que tivemos e ficou em nós, se fomos atentos e não fúteis demais.
“O que a senhora faz para se manter jovem?”, me perguntou um jornalista recentemente. Achei graça: eu não quero me manter jovem, quero ser uma pessoa interessada, e quem sabe interessante, na fase em que estou. Querer ter 40 anos aos 70 é tão patético quanto querer ter 20 aos 40, como se nos tivessem embalsamado na idade que achamos ideal. Que idade será essa? A infância é para alguns a fase mais feliz; para outros foi a juventude, e assim vai. Não acho que a chamada “terceira idade” seja a melhor, e detesto a expressão “melhor idade”, que apenas revela um preconceito atroz. Mas nela podemos ter e passar adiante coisas boas, belas e alegres, e contemplar do alto desses anos todos com mais lucidez e calma, por exemplo, a mediocridade reinante neste momento no país, se é que isso nos interessa. Deveria interessar.
Mas uma cruel fixação na juventude nos impede de curtir naturalmente a passagem do tempo, que, se aliada a certo bom humor, nos torna amados e amorosos, ligados ao mundo mesmo quando a velha senhora morte começa a rondar a nossa casa. E, se acreditarmos que esse rio da vida que corre não termina num nada absurdo, mas em nova fase, quem sabe não precisaremos tapar a cabeça feito crianças diante do que nos espera nesse mar onde tudo deságua – inclusive nossos preconceitos, nossas fragilidades e nossas ilusões.
*Fonte: Revista Veja, 30/01/2013