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Um lar para chamar de seu

“Fica comigo esta noite?” Não, espera. Ainda não está bom. Me deixa tentar de outro jeito, um que seja condizente com o que eu realmente quero: “fica comigo nesta e em todas as outras noites da minha vida?” É, acho que é quase isso.

As coisas da casa já se acostumaram contigo e, sempre que você fica fora por um ou dois dias, elas parecem sussurrar saudades madrugada adentro. A penteadeira range em melancolia e o espelho parece te procurar, quase fugindo de mim quando busco o pálido reflexo de um “Eu” sem “Tu”. Reclamam comigo e se zangam. Ontem mesmo cheguei a pensar que o sofá se moveu sozinho, apenas o suficiente para me acertar em cheio o dedo mindinho. Eu tento explicar que também a quero aqui em tempo integral, mas não me ouvem e até o meu chuveiro resolveu virar black bloc e queimar em protesto contra a sua ausência. Tudo aqui em casa resolveu ficar temperamental: da porta à cafeteira, que insiste em me servir café amargo quando quero com açúcar.

Às vezes o meu consolo é ir até o banheiro, pegar a escova de dentes reserva e colocá-la ao lado da minha, fingindo que é a sua – e isso alegra o meu dia. Faço chá pra dois, mesmo quando você não está. Leio e releio em voz alta os seus recados de bom dia colados na geladeira, bem ao lado da lista de compras, me fazendo lembrar da beleza absurda de uma tarde no supermercado quando se está acompanhado da pessoa certa. Ouço passos na sala enquanto estou no banho e constantemente saio correndo, pensando em te encontrar lá e te abraçar encharcado, só pra te ouvir brigar comigo e depois sorrir, me chamando pra terminar o banho. Só então me dou conta de que você ainda não tem a chave daqui, mas só depois de molhar o chão da sala inteiro e de ficar com um resfriado iminente.

Isso me faz lembrar de uma coisa. Amanhã de manhã, antes de você for sair, não se esqueça de pegar a chave que te fiz, ela está pendurada ao lado da estante de livros, com um laço vermelho. Ela é sua, assim como é seu esse lado da cama e também os meus primeiros olhares nas primeiras horas do dia e os últimos antes de dormir.

Quando sair por aquela porta, pensa logo na urgência do regresso. Volta e fica, dia após dia, e me ajuda a curar as dores dos habitantes dessa casa que nunca foi minha, mas que pede pra ser nossa.

Aproveita e faz também de mim um lar pra chamar de seu.

Jocê Rodrigues

"É escritor e editor".

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