Começou ontem a nossa despedida… enquanto eu levava o cachorro a passear a última volta no quarteirão, você fez as malas e embarcou sem deixar bilhete, somente aquele perfume fervendo no ar igual quando panela sai vapor no fogo, mas não tinha fogo, pois estava em você a chama de acender nós dois.
Enquanto eu dava a última volta no quarteirão, o cão insistia em voltar pra que você não partisse e eu não entendia linguagem dele nem faro nem nada, se não teria voltado pra tentar compreender se cabia fuga nos seus olhos ou se era mesmo coisa antiga, de tempos atrás, coisa que não se esclareceu e ficou no meio da gente como um acidente no meio da rua.
Caíram ontem à noite, a ficha e a lágrima no chão porque de manhã eu não varri e não tive tempo pra chorar antes de compreender por que alguém se muda assim do outro sem sair do endereço, e fica esse muito de você em tudo que eu olho, e as coisas me olhando têm a sua cara e o seu jeito de olhar, é como se você resolvesse ficar me contemplando de fora pra dentro muito tempo depois de ter partido e ficasse ainda vivendo, morando nas coisas e em mim com o intuito de me matar aos poucos.
Acabei não sabendo a maneira como você foi embora de mim porque eu nunca experimentei ir embora de alguém que eu amasse e jamais tive interesse em saber se ir embora de quem se ama causa essa deterioração, esse fuzilamento, esse inferno que é ser um endereço vazio pra onde o amor não volta. Não se engana um cachorro como desculpa pra abandonar um amor, fique sabendo.
Comecei hoje a varrer o chão e encontrei uma lágrima quente ainda, que só pode ser sua quando saiu com pressa enquanto eu e o cão éramos ludibriados enquanto você esquecia a camisa e nos abandonava — acho até que foi proposital deixar algo que vivia tão encostado a sua pele, na cadeira onde costumo descansar enquanto olho ao redor procurando um isqueiro pra queimar esse tecido ridículo que eu amava só porque guardava você dentro, mas dou voltas no quarteirão pra decidir se queimo ou não, enquanto os olhos do cachorro me perguntam se vou mesmo fazer isso. Saiba; não se abandona um amor como desculpa pra enganar um cachorro.
Decido que não queimo e dou a roupa ao cão pra que cheire e mate a saudade antes de mim, pra que ponha em você toda raiva e rasgue e esmiúce o tecido e transforme em fragmentos toda esta memória sinestésica, mas o cão é amoroso: cheira o pano e dá voltas no quarteirão e procura o dono com os olhos tristes e vazios como quem pergunta se ele volta ou não para usar a camisa que ficou estendida na cadeira que costumo descansar e pensar que já é hora de me entregar ao sono antes de dar inúmeras voltas dentro de mim pra acordar e percorrer o quarteirão sem procurar ninguém.
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