No dia 29 de Janeiro de 2014, eu saía para a minha jornada de 5 meses e 5 dias pelo outro lado do mundo. Meu corpo estava fraco, fruto de 5 infecções urinárias recorrentes e dias seguidos de vômito e diarreia que quase me impediram de viajar. Não tinha a menor dúvida de que todos aqueles sintomas eram a somatização dos meus medos que vinham se acumulando mês a mês, desde que decira viajar. Muitas pessoas haviam me perguntado, durante todos os meses anteriores de preparação e planejamento, se eu não tinha medo. Eu perguntava, medo de quê? “Medo de se perder, medo de ir para um lugar estranho sozinha onde ninguém fala a sua língua, medo de ficar doente e não ter ninguém pra te ajudar, medo de ser assaltada, de perder seu passaporte, medo de se sentir muito sozinha, de perder todos os seus alunos” e por aí vai. Me perguntaram até se eu não tinha medo de ser estuprada. Obviamente, algumas dessas coisas passaram pela minha cabeça, mas não chegavam a me causar medo. Talvez uma certa apreensão, mas nada que fosse capaz de me paralisar e me impedir de viajar. Meus medos eram outros, muito pessoais para serem citados aqui, mas posso garantir que eram tão ou mais assustadores quanto.
De fato, algumas daquelas coisas realmente aconteceram. Tive, sim, que ir a um hospital na Tailândia por ainda sentir as dores da infecção urinária que me acompanhava há meses. Cheguei, sim, a me perder na China, onde ninguém falava uma única palavra em inglês, e demorei séculos para conseguir achar meu caminho de volta pra casa. Passei também horas de perrengue tentando comunicar – através de mímicas e frustrados desenhos de batatas e cenouras numa folha de papel – que tudo o que eu queria era um prato vegetariano (qualquer um!!!) no aeroporto de Kunming, também na China. E me senti, sim, por vezes, muito sozinha. Tão sozinha a ponto de chorar por duas ininterruptas horas deitada no chão do terraço de um restaurante no Camboja, com a cabeça no colo de um indiano que estava lá supostamente para me dar uma aula de yoga. Me senti também tão angustiada que, certa vez, num restaurante ainda no Camboja, a única opção do cardápio que me desceria goela a baixo era a inusitada “Converse com o monge”. O garçom veio e me perguntou se eu estava pronta para fazer o meu pedido. Eu, embaraçosamente, apontei para o cardápio e respondi “Queria conversar com o monge”. Quinze minutos depois, chegava o meu pedido. Careca, enrolado em seu típico pano laranja e de moto. Num calor de aproximadamente 40 graus, ao som de um barulhento ventilador velho, sentada no chão de pernas cruzadas num salão vazio em cima do restaurante, eu desabafava minha vida com o monge budista. Em alguns momentos, me perguntei, sim, o que eu estava fazendo ali, sozinha, viajando por países estranhos onde eu não tinha ninguém com quem pudesse contar. Por diversas vezes foi realmente difícil, muito mais do que as lindas fotos postadas no Facebook aparentam. Não foi agradável dormir durante vinte e cinco dias numa cama tão dura e tão úmida que minha única chance de conseguir pegar no sono era me enrolar no edredon para que ele amaciasse um pouquinho aquela madeira coberta por uma fina camada de espuma que eles chamavam de colchão. E não antes de usar o secador de cabelo para secar o meu pijama e a roupa de cama que estavam literalmente molhados com a umidade do lugar cuja única decoração era um quadro de uma barata “estilizada” pintada por algum artista chinês. Ao menos não era um rato estilizado, como o quadro do meu vizinho. Prefiro as baratas aos ratos, se é que é possível fazer essa escolha. Durante os vinte e cinco dias que fiquei hospedada na escola de Tai Chi em Yangshuo, na China, o chão de pedra do meu banheiro nunca secou, o que inevitavelmente me fazia voltar para a cama com a barra da calça do pijama molhada cada vez que acordava à noite pra fazer xixi. Os caramujos gigantes subindo na parede do banheiro também eram dignos de desespero, mas eu apenas sorria e me orgulhava por não gritar cada vez que via um. Isso porque, na China, já me sentia calejada e preparada para as tantas adversidades de uma viagem desse porte e estilo. No Camboja, que visitara antes da China, numa ilha isolada no meio do nada, dormi por três noites num chalé de palha, sem porta, onde todo e qualquer bicho era bem vindo. Tomei banho de canequinha com água de chuva marrom de um balde azul gigante. Era importante que não o confundíssemos com o balde verde, que era a água para a privada. Nunca perguntei qual era a diferença entre os baldes, era melhor não saber.
Não, não foi uma viagem fácil e nem tudo correu às mil maravilhas. No entanto, por mais romântico e incrível que isso possa soar, eu nunca estive realmente sozinha. Ora em formato de monge, ora em formato de um professor de yoga indiano disposto a me dar colo, às vezes nas mímicas de uma garotinha de 5 anos, filha do meu professor de Tai Chi na China, e às vezes no sorriso largo de uma balinesa que me atendia numa loja, eu sempre recebia o amparo que precisava. E, sim, um dos meus medos realmente chegou a se concretizar, mas posso garantir que a dor que senti naquele momento foi infinitamente menor do que a dor que eu havia antecipado durante tanto tempo com medo do que poderia acontecer.
Mas, não, não foi também uma viagem difícil. Assim como a minha vida, minha viagem foi fácil e leve, pelo menos dentro dos meus padrões. Fiz grandes e verdadeiros amigos, cujas idades variam entre 5 e 75 anos. A Jéssica, a chinezinha da escola de Tai Chi, foi um alento num país tão estranho pra mim. Não entendíamos uma palavra do que a outra dizia, mas passávamos horas brincando e nos entendendo na companhia do Tom, o lindo e romântico francês que também morava lá e arriscava algumas palavras em mandarim nos servindo de intérprete nos momentos mais críticos. O Sr. Nagayama, meu companheiro no Caminho de Santiago, me ensinou que os japoneses podem ser e são, sim, muito amorosos, ainda que tenham uma maneira muito discreta de expressar isso. Me ensinou também a ser mais guerreira e a não desisitir daquilo que me propuser a fazer. Eles, assim como os tantos outros amigos que fiz durante esses cinco meses, me ensinaram que é fácil e possível aprender a amar as pessoas mesmo num período de tempo tão curto e com quem temos tão pouco, ou quase nada, em comum.
Cada situação dessa viagem me ensinou algo válido e precioso. Aprendi a confiar na minha intuição, a acreditar em anjos da guarda, a ser forte e resiliente. Aprendi também que chorar não me faz mais fraca, na verdade, muito pelo contrário. Aprendi que quase todo sofrimento pelo qual passei era mais pela antecipação de que algo pudesse acontecer do que pelo acontecimento em si, o que muitas vezes nem chegava a se concretizar. Aprendi que não precisava ter saído do Brasil pensando e temendo os cinco meses seguintes, que a única coisa que precisava (e podia) fazer era viver um dia da minha viagem de cada vez. No início do Caminho de Santiago, tive, por alguns instantes, um sentimento de desânimo ao pensar que teria que caminhar 800 km, mas logo aprendi que só com o que eu precisava me preocupar era o próximo trecho de aproximadamente 25 km. Um pouco mais adiante, quando surgiram as dores e o cansaço, aprendi que, na verdade, só com o que precisava me preocupar era em chegar até o albergue mais próximo. E quando tive uma bolha no pé que, de tão dolorida, me impedia até de pisar no chão, aprendi que só com o que precisava me preocupar era em conseguir dar o próximo passo, apenas o próximo passo.
Aprendi, ainda, que meus momentos mais felizes durante a viagem não foram as grandes realizações e sim os momentos mais simples. Na Tailândia, minha felicidade maior não foi receber o diploma de conclusão do curso de 200 horas que então me intitulava “Professora de Yoga”, mas sim a rotina do ashram e os passeios a pé e de bicicleta pelos campos de arroz nos arredores com o meu irmão e colegas de curso. Na China, meus melhores momentos não foram durante minha visita à Grande Muralha, mas as tardes de brincadeiras com minha amiga chinezinha ou um capuccino quentinho com o Tom num café diante das exóticas montanhas de Yangshuo num dia chuvoso. Em Bali, minhas melhores lembranças não são das visitas aos grandes templos e pontos turísticos da ilha, mas do casamento em que entrei de penetra cujos noivos me receberam tão calorosa e carinhosamente a ponto de insistir que eu comesse e bebesse com eles para comemorar. No Caminho de Santiago, minha maior alegria não foi chegar ao final do percurso de 800 km e me deparar com a imponente Catedral, mas sim admirar as pequenas flores do caminho, dividir o lanche com os amigos que ali nasciam e presenciar os mais lindos amanheceres diante das mais belas paisagens. Na minha viagem, aprendi, na prática, que a felicidade realmente está na jornada, e não no destino.
Hoje, olho pra trás e penso em todas as coisas maravilhosas que teria perdido se tivesse deixado o medo me paralisar. No Caminho de Santiago, uma pergunta que havia lido num livro logo antes de partir me acompanhou durante todo o tempo: “O que você faria se não tivesse medo?”. Fiz a mim e a outros peregrinos essa mesma pergunta, todos os dias. Estávamos todos ali em busca de algo. Mas, acompanhado do desejo de mudança, carregávamos também o medo. Medo de errar, de não dar certo, de se arrepender, de magoar alguém muito querido. Por isso, muita gente se identificava e encontrava conforto nessa pergunta e em suas próprias respostas. Na véspera do dia em que chegaria à Santiago de Compostela, no final de uma jornada não só de 800 km, mas daquela que, pra mim, havia começado meses antes, deitada na última cama de albergue em que dormiria durante o Caminho, pensando, analisando e agradecendo por aquela incrível jornada de cinco meses que estava prestes a terminar, olho para o lado e, me sentindo quase que numa cena de final de filme, leio a frase que algum peregrino havia escrito na parede, anos atrás, bem ao lado do meu travesseiro “¿Qué harías si no tuvieras miedo?”. Entre todos os albergues que poderia ter escolhido, e naquele albergue, entre todas as camas, “por acaso” eu havia escolhido justamente aquela, com aquela mensagem que era tão significativa pra mim. Eu acredito na mágica do Caminho e da Vida. E espero continuar, talvez romântica e ingenuamente, a enxergar a vida assim. Aproveito para agradecer aos que fizeram parte do meu caminho antes, durante ou depois da minha jornada. Aos que me ampararam e protegeram durante todo aquele período, minha mais profunda e sincera gratidão.
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Lysiane, gratidão por compartilhar tão ricamente a sua experiência.
E com certeza, quando eu pensar em desistir de algo, por causa do medo, trarei de volta ao meu coração essa pergunta. O medo é destruidor de sonhos, de conhecimento, de felicidade. Mas "O que você faria se não tivesse medo?", podemos ser e fazer muito mais do que imaginamos.
Lindo texto!
Beijos!
Desejo muita luz e paz para sua vida.
O texto é lindo. Imagino que a jornada toda foi muito mais! Mas ela não é viável pra quem tem pouco dinheiro! Pode-se dizer, mas é só uma caminhada... Mas ela tem custos de viagem! Nenhum "pobre" (como eu) pode se dar ao luxo de fazer essa caminhada. Portanto, viajo com vcs., através de vcs. que foram e contam! Um sonho engarrafado pra mim! Mesmo assim sou muito grata! Vivencio o que posso por suas experiências!
Olá, Crislaine!
Fico muito feliz que tenha gostado da minha história e que essa pergunta tão poderosa vá te acompanhar daqui pra frente. As respostas que obtemos dela vem do coração e não da nossa mente carregada de crenças desenvolvidas durante a vida. Então o resultado só pode ser mais paz e felicidade.
Te desejo muita luz e paz também.
Obrigada pelo comentário! :)
Beijos
Lysiane.
Oi Marluci,
Obrigada pelo comentário.
Concordo que não seja uma viagem viável pra muita gente, mas também não é impossível.
Tudo o que a mente pode conceber, ela pode conseguir. Se esse é realmente o seu desejo, lute por ele.
"Quando desejamos muito uma coisa, todo o Universo conspira a nossa favor!"
Espero que realize seus sonhos!
Beijo grande