“Reinventar-se é ser capaz de colorir a vida com tons que não desbotam diante da resistência das dores.” Ester Chaves
Quando crescemos, costumamos “reinventar” a infância. Recordamos com lágrimas nos olhos, a imensidão daquele quintal cheio de árvores e mundos por desvelar. A proibição era o gostinho saboroso que temperava a aventura de invadir territórios e sair com as sacolas abarrotadas de frutas. Às vezes, esquecíamos o perigo do flagrante e sentávamos bem perto da mangueira para devorar os produtos do furto. O hálito fresco do vento batendo nas folhas das árvores, a tarde caindo mansa sobre a varanda do mundo, dava a sensação de que jamais seríamos surpreendidos, pois o nosso único crime era o de ser feliz. O medo era passageiro naquele comboio de sorrisos e brincadeiras. Se um amigo não pudesse comparecer à reunião clandestina, recebia em casa uma sacola de frutas mediante a promessa de ressarcir o outro na próxima aventura. E assim, seguíamos, eternos cúmplices, dotados de uma fraternidade inviolável. O suporte na hora de subir o muro mais alto e a sensação de vitória quando estávamos todos do mesmo lado, era a nossa maior demonstração de coragem e cuidado. Depois da travessia, avaliávamos as condições físicas de cada um, detectávamos que não havia arranhões nem blusas rasgadas, e seguíamos desbravando os quintais alheios.
Por que buscamos a infância para recordar que um dia fomos felizes?
O crescimento nos endurece um pouco, sem dúvida, mas não devíamos recorrer à infância para escapar do lugar que somos agora. O nosso lugar deve ser acolhedor e as boas lembranças da infância servem para não nos perdermos de nós mesmos, da nossa história. Crescemos, sim. Mas por que não nos reinventar?
Se era bom o cheiro do mato, por que não é mais? Se era bom viajar e conhecer lugares, por que não é mais? Se era bom fazer as coisas mais simples com capricho e alegria, por que não fazer mais?
O automatismo, o “mais do mesmo” nos levam a concluir que o “antes” era melhor que o “agora”. O ser não é um construto completo, está sempre em “vias de tornar-se”. Portanto, a mudança está disponível em tempo integral. A infância é a nossa memória primitiva, costumamos guardar lá os rascunhos de sonhos, a “poeira das nuvens”, os devaneios e as nossas borboletas estampadas. A infância deve ser aquela casa de passeio, onde o visitante já crescido, demora olhando os brinquedos, ri de todas as travessuras, e sente saudade porque viveu da forma mais intensa que podia.
A responsabilidade aparece com o tempo, está no kit do crescimento, assim como estão todos os outros afazeres que às vezes nos distanciam do que fomos, e assim, de vez em quando, mergulhados nessa memória saudosa, nesse recanto inaugural, sentimos saudade da ingenuidade, da forma mansa e corajosa que encarávamos a vida. “Reinventar-se é ser capaz de colorir a vida com tons que não desbotam diante das dores”. Se crescer é doer sem explicação e ficar sem respostas de vez em quando, que possamos retornar à infância para recuperar o fôlego e depois, renovados, colorirmos com graça o privilégio de cada instante. Infância é lugar para voltar sorrindo.
Imagem de capa: La douche à Raizeux, by Robert Doisneau, 1949
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