A vida que passa, o silêncio que fica, um girassol que vive

Ela chegou, abriu a porta e como outro dia qualquer colocou a bolsa na velha cômoda da sala de estar. As chaves, presas ao antigo chaveiro de girassol, caíram no chão como era de costume. Na casa, apenas os ruídos do barulho do silêncio. O móvel que estalava, a geladeira que ressoava um tranco para funcionar. Girou a torneirinha do filtro, o som que se ouvia na casa era o da água caindo no velho copinho de metal que ficava com a aparência branca e fresca da água gelada.  Andou pela casa, com o copo na mão, tirando um sapato de cada vez e deixando-os para traz como se fosse um rastro, como se tirasse junto o peso da vida lá fora. Como se estivesse perdida na própria solidão, sentou-se na cadeira à mesa de jantar. Com a cabeça baixa e os olhos no copo, deu-se a parar no tempo. Pairou o olhar para a parede branca, antes colorida de momentos, fotos de sorrisos, abraços de amigo, beijo de pai, carinho de mãe… Amor.

Nesse instante, pela janela teimava em entrar o cantar dos passarinhos, a buzina do carro do vizinho, o balançar das folhas ao vento, crianças correndo na praça à esquina de casa, o choro do recém-nascido da casa ao lado. Uma brisa balançou-lhe os cabelos. Era a vida fora dela que teimava em dize-lhe em sons que tudo pulsava, que a vida estava viva, que o fazer-se, por vezes, podia doer, desconstruir-se a fazia se sentir viva. Giacinta só não aprendera ainda a sentir a próprio pulsar em si mesma, vivia, mas não sabia para quê. Afinal em meio a tanto caos, qual seria o sentido da sua tão comedida existência?

O olhar ainda estava fixo na parede branca. Naquele momento o instante parou, vinha-lhe à mente a fadiga de suas horas. Dia após dia, acordar, escovar os dentes, sair  de casa, trabalhar, voltar para casa, jogar a bolsa na velha cômoda e finalmente ouvir as chaves presas ao antigo chaveiro de girassol cair no chão. Era como se o ritual nostálgico chegasse ao fim. E era ali que Gê recriava e criava a vida que queria para si. Ali sentada na cadeira bamba à mesa de jantar, a parede branca transcendia a relação tempo e espaço se tornando  como uma grande tela  onde Giacinta passava o filme de uma vida que era dela, que era ela, mas que não a pertencia mais. Ali, naquele canto da casa se podia ouvir os aguçados ruídos dos barulhos do silêncio que aos ouvidos de Gê penetravam.  Na parede branca Gê via e ouvia as risadas mansas de conversas com os amigos, o toque quente na pele da mão paterna em um dia desses de almoço em família, o olhar que vê e enxerga a alegria das crianças no parque num dia sol, uma mesa de buteco, copos meio cheios outros meio vazios, conversas delongas, filosofia de butiquim, mas aquela que enche a alma, não de philos, mas de lembranças, a surpresa no dia do aniversário, os amigos cantando parabéns, balões e bolo, a boca molhada de um antigo namorado, o orgasmo estremecido, as lágrimas da muitas perdas.  Era esse o som do silêncio na parede branca,  que fazia tremer em sua carne as lembranças de um tempo que existia no entrelaçar da memória. Um tempo perdido no tempo. O psicológico que maltrata o cronológico. Na lembrança do que não volta, ficou de Giacinta ruídos das risadas, o toque já frio na pele, a embriaguez do buteco, o copo pela metade, a despedida que não aconteceu, o riso que fez-se silêncio, a vida que não aconteceu.

Como uma película que passasse a sua frente Gi  retornava todos os dias aos tempos em que se sentia cheia de ar nos pulmões, oxigenando cada célula de seu corpo, bombeando vida à carne. Mas como se expirasse todo o ar que prendia na tentativa de manter-se naquele instante, a realidade a tragava de novo e Gi se percebia como se tudo acontecesse num piscar de olhos. Percebeu-se olhando para o copo de água não mais gelado. A vida já não pulsava, só estava. A rotina prosseguia como havia de ser. Como que se arrastando para o quarto, Ge percebeu no silêncio da casa o antigo chaveiro de girassol. Ali, naquele velho chaveiro de girassol, mas ainda com um intenso amarelo,  Giacinta inspirou cores de vida. Um breve sorriso de canto brotou em sua face. Gi desviou o olhar e se dirigiu a seu quarto. E mesmo em meio a tanto preto e branco, uma aquarela fez viva em seus pensamentos.  Giacinta sentiu o que há muito não sentia, o pulsar de vida batendo em sua epiderme, o oxigênio carregado de circulando por suas veias, uma borboleta reviveu em seu estômago.

O chaveiro permaneceu no chão. A Gi…aaah a Gi…. Girassol.

Iolanda Carneiro

Jornalista e professora por formação. Amante da natureza e dos animais. Sua companhia é seu cachorro vira-lata, Zeca. Encontra na palavra escrita aquilo que muitas vezes falta à boca, sons que não ouvem o ouvido, coisas que não veem os olhos. Cronista de emoção, sem grandes intenções. Escrever é tornar-se vivo, é ser, é busca e registro dessa força estranha, mutante e diversa que se chama vida.

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Iolanda Carneiro

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