Eu nunca vou me esquecer da primeira vez que a vi. Era aniversário de uma amiga, e eu conhecia pouca gente no evento, apenas a aniversariante e a Marília – minha melhor amiga e fiel escudeira. Após alguns cumprimentos casuais, a Marília se perde por longos minutos no abraço da menina do lenço na cabeça. Eu nunca entendi as mulheres que tapam seus cabelos. Eu sempre tive um caso profundo de amor com minhas longas crinas, uma síndrome de Rapunzel – talvez porque até os 10 anos, minha mãe cortava os meus cabelos extremamente curtos. Desde que pude escolher, sempre cultivava as madeixas longas e esvoaçantes. Nunca escondidas. Nem boné, nem toca, nem chapéu, burca ou lenço. A minha vaidade feminina não me deixava tapar os cabelos.
A Marília me apresentou rapidamente, e logo começou a perguntar como a menina do lenço estava, e como ia o tratamento. (Pausa) Soco na boca do estômago. A menina não tapava os cabelos. Ela não os tinha. Uma consequência óbvia (pra qualquer ser pensante que não eu!) do tratamento de quimioterapia. Fiquei com vergonha. Sorri amarelo e quis sentir pena.
O desconforto durou apenas um segundo.
A menina do lenço na cabeça era tudo, menos digna de pena. De sorriso largo e olhos brilhantes ela contou tudo a Marília como quem tirava de letra até mesmo a assustadora letra “C”. Falou sobre as rotinas de hospitais, e das férias maravilhosas que ela tinha deles vez que outra. Contou de uma adorável viagem com o namorado, um garoto bonito que segurava suas mãos com carinho. Ela falou animadamente de seu blog, que
escrevia pra ajudar outras pessoas. Da alegria dos grupos de apoio. Das novidades estéticas que descobrira, como esmaltes que não causavam enjoos e lenços personalizados, mostrando compromisso com sua própria autoestima. E eu preocupada com meus cabelos. Quis engoli-los. Mais que isso. Quis ser amiga da menina do lenço na cabeça.
Eu entendi naquele dia, que não podia em sã consciência não me envolver com aquela pessoa. Não. Eu precisava ser amiga dela! Aquela menina do lenço na cabeça era muita luz. Ela era muita vida. E eu a queria na minha. Comecei a acompanhar o blog e fazer parte da torcida. A cada etapa do tratamento vibrava junto com ela em seus posts animados. Nos menos animados – e estes ainda assim cheios de garra- mandava mensagens de carinho, e ela devolvia outras de gratidão. Sempre muita gratidão.
Um dia, encontrei amigos que há muito tempo não via, e um deles comentou comigo como o meu cabelo estava exageradamente comprido –”Você deveria considerar doá-los”, ele sugeriu. Não deu outra. Mandei imediatamente uma mensagem pra menina do lenço na cabeça: “Vamos cortar meu cabelo! A gente faz uma ação no teu blog convidando mais gente a doar. Podemos tirar umas fotos, você com a tesoura na mão e meu cabelo na outra, vai ser demais!” Ela riu largo e disse que eu estava maluca. “Mas você vai cortar esse cabelão lindo?!”. E pela primeira vez eu não vi meu cabelo longo como minha marca registrada, meu frisson feminino. “Ah, mas é SÓ cabelo, não é?!” – “Hahahah. Ok, vamos fazer”, ela respondeu empolgada.
Nos meses que se passaram mantivemos contatos frequentes. Ela tinha uma rotina conturbada com o tratamento. Eu tinha meus compromissos, e a gente tentava fechar um encontro. Ela me mandava fotos dela com seus lenços – que eu passei a admirar. Eu mandava fotos de meus irmãozinhos escovando meu cabelão – “a Mana vai dar o cabelo dela pra titia porque a mana tem um montão e a titia não tem nenhum”, eles contavam na
escolinha, entendendo que aquilo era importante. Às vezes a menina do lenço na cabeça ficava desanimada, ou até com vergonha de me fazer esperar tanto tempo para cortar o cabelo. Eu a encorajava – “fique tranquila, vou juntando e só vou cortar o cabelo depois que você sair do hospital”, ela agradecia. Ela sempre agradecia.
Então as nossas agendas se fecharam, e eu estava feliz em finalmente ver de novo a menina do lenço na cabeça. Ao vivo e a cores. E eu queria encontrá-la para tomar doses de sua alegria. Sua energia. Sua coragem.
Além disso, eu estava empolgada em doar meu cabelo. Era uma sexta-feira de novembro, semana que antecedia o nosso encontro. A Marília me liga às 7:00 da manhã e pelo telefone, entre soluços inconsoláveis, me informa que a menina do lenço na cabeça havia partido para colorir o céu. Não consegui confortar a Marília. Apenas pedi para que ela tivesse coragem, como a amiga querida que ela havia me apresentado, aquela que em tão
pouco tempo de convívio, tamanha admiração havia conquistado.
Eu rezei muito antes de cumprir minha promessa. Segurei aos cabelos como quem segura a uma corda no penhasco da realidade. Quando os cortei, lágrimas rolaram. A menina do lenço na cabeça não estava segurando a tesoura, ora, talvez estivesse. E mesmo depois de corta-los, mantive as mexas perto de mim, como um amuleto improvável. Um lembrete diário para me desapegar das coisas sem valor. Um lembrete diário para ter coragem, alegria e doçura frente à diversidade. Um lembrete diário daquele lenço.
Depois de um mês segurando aos cabelos já cortados, resolvi enviá-los para doação.
Me pego constantemente pensando na menina do lenço na cabeça, aliás, sempre que penso em reclamar da vida. Penso que o mundo está mesmo carente de histórias de pessoas que enxergam a vida como um milagre, indiferente da sua trajetória. Se curta ou extensa. Descomplicada ou desafiadora. E eu resolvi contar história dela, não porque acho que fiz algo admirável por ela doando meus cabelos, mas porque a menina do lenço na cabeça fez algo admirável por mim. Ela me tocou com sua história, para que eu pudesse tocar alguém com a minha. E este ciclo pode ser infinito. Basta que cada um de nós se empenhe em compartilhar um pouco e celebrar muito as histórias de heroínas como esta, de carne, osso e lenço na cabeça. O mundo está precisando de gente assim.
Uma singela e respeitosa homenagem a Eduarda Maíra Rauber, inspiração através do blog Força na Peruca e autora de uma linda história de vida.
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Que lindo teu texto... muito obrigada por compartilhar. Estou em tratamento quimioterápico também e na fase de desconstrução da minha antiga imagem. Teu texto me ajudou muito, assim como a figura da menina do lenço na cabeça.
Gratidão!