Quando me tornei mãe, um dos meus maiores medos era que meu filho colocasse grãos de feijão no nariz ou ouvido. Já tinha ouvido histórias semelhantes na família e aquilo me parecia muito comum, apesar de perigoso. A fase de cometer tal delito passou, e com o passar dos anos, outros medos, igualmente pertinentes ou não, vieram se somar ao meu repertório de mãe atenta, preocupada, precipitada.
Mas o tempo passa e vamos percebendo que as profecias sombrias nem sempre se concretizam; que o medo paralisa e aprisiona, que podíamos usufruir mais da paz que nos é dada por direito se apenas déssemos uma trégua.
E percebo agora que o mundo precisa de trégua. Que podíamos ser bem mais felizes se apenas usufruíssemos da vida que Deus nos deu _ como prova de amor _ sem receio de levantar e cair, sem medo de que nossa vida vire de cabeça pra baixo se o outro optar por uma forma de viver que julgamos incorreta, sem enxergar maldade onde há apenas escolha, sem dar nomes obscuros ao que a gente desconhece. Precisamos de trégua; de olhar para o próximo com mais amor e tolerância, sem achar que algumas maneiras _ diferentes das nossas _ de ver o mundo podem contaminar nossos filhos ou as gerações que estão por vir.
Trégua pra aceitar as diferenças, trégua pra abraçar o desconhecido, trégua para enfrentar os tabus.
Estou lendo a biografia de Malala, que ganhei de minha mãe no último fim de semana. Muito além da história da menina que ganhou o Nobel da paz e tornou-se símbolo da luta pelos direitos das mulheres _ principalmente por educação num país massacrado por leis rígidas e religiosidade sufocante_, o livro narra a história de um povo que tem medo. Medo que sua população pense, que os costumes mudem, que as mulheres possam ter direitos iguais aos homens. É Malala quem diz: “Nasci menina num lugar onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e procriar.”
O terrorismo no mundo muçulmano é a materialização do medo numa sociedade que não aceita mudanças, que não dá tréguas à evolução e não tolera diferenças ou divergências. Sob o domínio do Talibã, que acima de tudo é uma organização que teme (e por isso espalha o terror), o Paquistão tornou-se terra de desigualdades e distorções dos direitos humanos.
No Ocidente, o medo também conduz e massacra em nome de uma Verdade pura e intocável. Muitos cristãos _ que conforme o nome diz, deveriam seguir os ensinamentos de Cristo _ ainda têm dificuldade de aceitar os preceitos que esse mesmo Cristo propagou durante sua existência, e colocam restrições a um dos maiores mandamentos :”Amar ao próximo como a ti mesmo”, caso esse próximo não se enquadre naquilo que ele julgue certo, ou melhor dizendo, ‘ do lado do bem’. E se indignam com mudanças, com o novo que chega, como as novas _ e louváveis_ mudanças na igreja católica a partir do grande Papa Francisco.
O temor que não permite às mulheres o direito à alfabetização no Paquistão (pois desta forma também terão direito ao livre pensamento), é o mesmo medo que faz com que Papa Francisco _ pasmem _ seja rejeitado ou olhado com olhos duvidosos por alguma parcela de religiosos dentro da própria igreja católica.
O medo de que os limites sejam rompidos _ pois ‘o que faremos com nós mesmos se não houverem tais limites?’_ assusta e incomoda, pois reflete a insegurança: ‘o que será de nós agora que tudo o que pensávamos que era não é mais?’ E mais ainda: ‘o que faço com o medo que tenho do mundo que deixaremos para nossos filhos se as barreiras forem quebradas? E se meu filho abraçar aquele que julgo tão diferente de mim? E se meu filho quiser ser, ele mesmo, tão diferente de mim?’
Mudanças. Ninguém disse que seria fácil assimilá-las. Porém, é a única maneira de não retroceder. O único jeito de descobrir que existem outras formas _ diferentes, e nem por isso erradas_ de enxergar uma mesma situação. Só temos que estar dispostos. Abertos a abrir mão de nossas convicções e aprender a enxergar com o coração, percebendo que nem tudo é negativo; e muito daquilo que julgamos difícil de entender, está aí para nos ajudar a evoluir.
Malala e Papa Francisco nos desacomodam. Tiram de nossa zona de conforto e nos colocam a refletir. A dar uma trégua aos temores que assolam nossa existência, e ousar construir um mundo mais igualitário e melhor, onde os verdadeiros Direitos Humanos sejam cumpridos, com dignidade, tolerância e amor. Onde o medo não gere arrogância nem tirania.
Quanto a mim, prometo dar uma trégua a meus receios maternos também. A fase dos grãos no ouvido passou, mas virão outras inseguranças igualmente preocupantes e claustrofóbicas. Que eu possa dar limites baseada no objetivo de fazê-lo crescer e ser capaz de fazer suas próprias escolhas no futuro; mas nunca, jamais, com o propósito de amedrontá-lo e assim acorrentá-lo a mim.
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Parabéns por esse belíssimo texto. Saiba que sou sua fã.
Boa tarde!
Meu nome é Maurílio, sou filósofo, sociólogo e teólogo e, atualmente faço mestrado em Ciências da Religião. Como pode ver, também não sou das letras. Apesar disso, tenho um blog e há muitos anos escrevo crônicas e contos. Olhando a esmo blogs de crônicas, vi o seu. O que me chamou a atenção foi você dizer que está nas "entrelinhas". Não sei se sua fonte foi a Clarice Lispector, mas, foi dela que eu retirei uma frase semelhante para colocar na introdução do meu livro. Você escreve de forma leve, às vezes parece um bate-papo. Gostei bastante do seu estilo, parabéns. Também tenho dois filhos adolescentes, um casal, me identifiquei com as crônicas envolvendo essa difícil arte que é ser pai. Parabéns e fique com deus!
Maurílio Ribeiro da Silva
Obrigada Inês! Fico feliz em conhecê-la e grata pelo carinho! Bjs!
Obrigada Maurílio, pela visita e pelo carinho! Fiquei curiosa para conhecer seu blog, vou procurar e posto meu comentário por lá! A frase das "entrelinhas" li certo dia num livro do Pe Fabio de Mello, mas adoro Clarice L. também! Abraços!
Fabíola, parabéns por mais esse belo texto. Palavras que denotam compreensão profunda e sensibilidade. Assim como a Malala e o Papa Francisco, julgo vc como uma semeadora e difusora do amor e tolerância em tempos de ódio e medos profundos. Muito obrigado por partilhar a sua sensibilidade. Abraço, Edson
Olá Edson! Obrigada por sua generosidade e amizade! Escrevi esse texto por motivos que fogem ao meu controle, mas que me incomodam bastante, como o preconceito e a intolerância. Estou longe de ser como aqueles que admiro, mas através do blog acredito que posso tocar outras pessoas! Obrigada pelo carinho, vc é um leitor muito especial! Abraço!
Preconceitos e intolerância sempre existirão. Ao amadurecermos podemos tomar consciência destes erros, sobretudo se já os sofremos. Há também os perfeccionistas que não toleram seus próprios erros. Suas crônicas levam-nos a questionamentos que ajudam em nosso convívio social.
Que blog lindo. Parabéns!!!