Somos frágeis. Cada um à sua maneira, somos frágeis. E mesmo tentando evitar, a fragilidade nos alcança, nos incomoda, nos dói.

O palhaço tropeça no chapéu diariamente em frente ao meu carro, no cruzamento da Andrade Neves com a Barão de Itapura, duas avenidas aqui de Campinas.
Por mais que evite o contato visual, ele está lá, diante do meu carro confortavelmente fechado, equilibrando quatro bolas que rodopiam sobre sua cabeça coberta com o chapéu.

A cena se repete todos os dias, e todos os dias evito olhar-lhe nos olhos. Pela repetição do gesto que virá em seguida _ o chapéu se transformando num porta niqueis_ mas principalmente por me lembrar que sou vulnerável como ele.

Dou-lhe algumas moedas _ sei que no dia seguinte terei que ter novo repertório de trocados_ mas isso não basta. Preciso olhar-lhe nos olhos, conhecer sua história; descobrir se, caso pudesse rechear seu chapéu com notas mais gordas, conseguiria diminuir o peso de nossas fragilidades _ a dele e a minha.

Não sei se isso ajudará, mas preciso dedicar-lhe tempo. Lembro então que meus sentidos estão impregnados. A presença dos pacientes do Centro de Saúde onde trabalho permanece comigo alguns minutos após a habitual jornada, e meu vestuário está repleto de cansaço.

O palhaço me recorda que somos frágeis, quebráveis, que estamos vulneráveis à vida e à morte.

Por isso é tão difícil encará-lo. A vida já é bastante doída para nos doermos mais. Nossas lascas ficam escondidas, enquanto as dele são expostas feito o chapéu que se adianta antes do show.

Mais fácil escolher logo as moedas no fundo da carteira que ter que justificar nossa pequenez, nossa incapacidade de encará-lo como igual.

Somos todos iguais. Iguais ao palhaço de rua, iguais ao menino que o quadro do Fantástico representou tão bem no último domingo.

“Vai fazer o quê?”, perguntava a atração, enquanto um ator mirim abordava as pessoas na calçada com um pedido inusitado: “Tio, me dá um livro?”

Numa sociedade desconfortável perante o clamor das calçadas, ouvir o pedido do menino é mais que escutá-lo. É perceber que ali não se pede dinheiro, nem comida para matar a fome. Mas educação. Um livro. Um pedaço do seu tempo corrido para subir as escadas da livraria e ler algumas páginas para o garoto analfabeto. Um clamor. Um chamado. Uma necessidade de ser visto além dos trapos e do incômodo que provoca por estar ali. Simplesmente por existir.
Enquanto muitos nem ouviam o que o menino tinha a dizer, outros entravam na livraria e, além de se oferecerem para comprar o livro, liam para o rapazinho.

Me surpreendi comovida do outro lado da tela. Comovida como outros tantos que postavam no twitter a mesma emoção. A emoção de perceber que ainda existem pessoas sensíveis ao sofrimento alheio, pessoas que não têm medo de se fragilizar com a fragilidade do outro, pessoas que arriscam seu próprio desamparo ao encarar com coragem o desamparo do menino.

Hoje quero encarar o palhaço. Quem sabe trocar algumas palavras antes do sinal abrir.
Sentir-me quase em carne viva ao abordar suas cicatrizes. Mas não vacilar ao olhá-las de frente, assim como devo fazer com as minhas.
Quem sabe tocá-las, percebendo que somos feitos do mesmo tecido.
Percebendo que somos um.
Cada um de um lado do vidro do carro, mas ainda assim, UM.

Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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  • Fabíola, também vi a reportagem e me emocionei. Apesar de questionar outra coisa: se fosse um menino negro o ouviriam? Pois apesar de o ator estar bem caracterizado até a pele de gente bem cuidada é diferente, já reparou? Depois comentei o caso com alguns colegas e um deles ainda me disse: "deve ser montagem, a Globo faz muito bem isso. "Na hora, meu pequeno mundo de esperança desabou. Fiquei pensando "ainda sou tão romântica a ponto de acreditar em bondade?". Ontem deparei-me com uma pessoa jogada ao chão e lembrei da cena da TV de novo, parei e tentei ver o semblante mas não consegui, nem os olhos conseguiam se abrir. Minha inércia em pé era a mesma inércia dela deitada. Todos UM.

  • Perfeito... Como e difícil olhar nos olhos das pessoas.. Quanta impotência existe antes de sermos um ? Sensível e maravilhoso texto.. Abraços

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