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Uma vida sem protocolo

Há oito anos venho tentando minha redução de carga horária. Trabalhando 36 horas semanais num Centro de Saúde da rede pública de Campinas (atuo como dentista), tento protocolar meu pedido desde que meu filho nasceu. Porém, a solicitação deve seguir um caminho árduo, requerendo assinaturas desde minha chefia imediata, passando pelo Distrito de Saúde até ao secretário_ o último da cadeia geográfica dos postos burocráticos dentro da prefeitura.
Durante os últimos oito anos, andei com minha solicitação em mãos, de coordenador em coordenador, pedindo gentilmente que assinassem meu pedido. Porém, alegando demanda reprimida no setor, nenhum visto, nenhum passaporte, nenhum carimbo, nenhuma rubricazinha sequer ocorria. Pra piorar, observações escritas em caligrafia tensa denunciavam minha importância imprescindível e irrevogavelmente reduzível.
Essa semana, porém, uma pessoa próxima ao secretário dispôs-se a me ajudar. Me pediu o número do protocolo. Eu não tinha. Tentei explicar. Ela disse: “Sem número de protocolo, nada feito”. Expliquei novamente. Sem chance. Então decidi redigir uma carta. Uma carta sincera, sem protocolo, uma carta direta ao secretário. Você envia? Envio. Obrigada. De nada.

 (Essa não é a carta que enviei, mas poderia ter sido.)

  Prezado Sr Secretário de Saúde:

Eu não acredito que a profissão de uma pessoa seja a porção mais importante de sua vida. Não, eu nunca pude concordar com isso, e embora tenha aprendido que estudar, fazer uma faculdade e exercer um trabalho com dignidade seja o norte de qualquer vida, ainda assim, não concordo com o peso que alguns cargos ou ofícios possam ter no decorrer dos dias, meses e anos da existência de alguém.

Busquei uma vida segura. Fui a pessoa mais básica desse planeta; desde os históricos do ensino fundamental até a prova do vestibular para odontologia numa faculdade federal no sul de Minas Gerais. Entrei para as aulas de anatomia e materiais dentários aos dezessete anos e aos vinte e um, já formada, prestei concurso para a prefeitura de Campinas. Passei. Fui designada para um ‘postinho’ pequeno na periferia, onde cumpria uma jornada comprida, até às dez da noite. Haviam dias em que as luzes dos corredores se apagavam e permaneciam apenas eu, o paciente, e o guarda que fazia a segurança noturna. Não, eu não me queixava. Era o início, e no começo a gente tem aquele gás, aquela vontade de mudar o mundo, de não recusar uma dor, de aceitar tudo o que lhe é posto no caminho. Além do mais, eu só tinha 21 anos, não possuía casa própria, nem marido, muito menos filho. Meu único desejo era ser a melhor profissional possível para aquela população carente. Me especializei aos 22 anos. Aos 23, me candidatei a um cargo como especialista e passei. Fui trabalhar num outro Centro de Saúde, maior e mais desorganizado (sim, des- organizado), próximo ao hospital público da cidade. Também dei tudo de mim. Precisava ser melhor a cada dia naquilo que fazia, e tratar os canais dos dentes da população, impedindo sua perda precoce, era o que me realizava na vida.

Mas os anos passam, doutor. E embora continuasse me dedicando com afinco à cadeira odontológica, outros interesses vieram se somar à minha vida. Uma vida sem protocolos, mas muito valiosa para mim.

Para o senhor ter uma pequena noção do tempo que me dedicava ao trabalho em sua prefeitura, quero lhe contar que conheci meu marido nos corredores do Centro de Saúde. Casamos, tivemos um filho.
Mas sabe, as datas correm, as prioridades mudam.

Chega uma hora em que é preciso fazer o caminho de volta. E embora eu tenha apenas quarenta anos _ sim, apenas, pois a expectativa de vida aumentou e portanto estou jovem ainda _ já vivi o suficiente para perceber que o quanto antes eu perceber que devo trilhar esse retorno, tanto antes posso me sentir mais realizada e feliz.

Meus maiores presentes não se encontram dentro de uma carreira profissional, mesmo que isso me dê muita satisfação. Meus maiores presentes estão do lado de fora, em minha casa, no ninho que levei alguns anos de trabalho árduo para construir. É no meu refúgio que vejo meu filho crescer, e me entristeço quando passo o dia todo trabalhando e percebo que só tenho as últimas horas da tarde para usufruir de sua risada barulhenta e mãozinhas carinhosas, que crescem sem noção do desenrolar de minhas horas distante de casa.

Não doutor, eu não quero uma vida em que o sol fique fora da janela e a voz de meu filho seja ouvida apenas pelo telefone. Quero sentir o vento nos cabelos e conversar olhos nos olhos com meu marido na hora do almoço.
Eu preciso de uma vida sem protocolos, uma vida em que o respeito a mim mesma e aos que amo venha acima dos ganhos salariais.

Ganhar menos para mim é ganhar mais, muito mais. Ao estabelecer minhas prioridades, percebo que não posso continuar numa carreira que não me ama como eu aprendi a me amar. Num trabalho que não aceita meus valores como parte do meu ofício também. Não quero me demitir. Gosto do que faço, já lhe disse isso? Gosto dos meus pacientes e da expressão de alívio que eles têm quando a dor vai embora. Gosto de ver a arcada recuperada e o sorriso preenchido outra vez.

Mas também tenho uma vida fora dos jalecos. E preciso valorizar essa vida que lutei tanto pra construir. Meu pai e minha mãe trabalharam muito, sabia? E meu pai, principalmente, colocava o trabalho acima de tudo. Ele queria que seu pai, meu avô, se orgulhasse dele. Mas não deu certo da maneira que ele pensou que daria. E eu assisti a tudo, doutor. Assisti à glória e à decadência do império que ele construiu. E por isso tento trilhar um caminho diferente. Um caminho onde a família e os afetos vêm em primeiro lugar. Porque no final das contas, de que adianta todo sucesso e dinheiro do mundo se for para brindar sozinho? De que adianta bens e ações sem uma vida para usufruir? Não, doutor. Salário alto não me interessa agora.

Consegui mais do que pretendia e como disse, é hora de fazer o caminho de volta. Quero caminhar na Lagoa com meu menino, aproveitar o resto do dia no meu quintal, atender aos telefonemas de minha mãe com menos impaciência aos detalhes. Quero deixar meu filho comer em paz sem mandá-lo “andar logo”, como tenho feito nos últimos anos.

Quero mais tempo doutor. Tempo tornou-se artigo raro e preciso daquilo que muita gente chama de supérfluo, mas que pra mim é luxo: ler um livro na rede, conversar com a D. Jandira que trabalha lá em casa, tomar um cafezinho na padaria com minha mãe, ouvir Caetano cantando um dueto lindo com Maria Gadú e me emocionar na parte “Ah… Neguinha… Deixa eu gostar de você…”

Entende doutor? Ainda não? Não tem problema, eu não o culpo. Muita gente que conheço ainda não entendeu também. Mas é porque a vida ensina de diferentes maneiras, e eu tive a sorte de ter sido espectadora desse tipo de “falta de tempo pra vida” ainda muito menina, como lhe disse. Eles tinham que ir, para provar que eram capazes. E isso tem sua beleza também. Mas o preço é alto, e sorte de quem percebe isso antes do tempo.

Minha hora chegou. Tenho quarenta anos e não desejo mais corridas em minha vida. A única corrida que anseio é contra o tempo. Aproveitá-lo com quem eu amo e segurá-lo em meus registros de memória é o combustível que me move. Escrever sobre o que vejo também. Por isso doutor, diminua o peso em minhas mãos envolvidas em luvas de borracha. Me permita reduzir o tempo nos jalecos e aumentar a poeira em meus cabelos. Que minha existência seja inundada por milagres cotidianos, aqueles que só os que têm uma vida sem protocolos são capazes de enxergar.
Com meus sinceros agradecimentos,
 

Imagem do post: Phoebe Wahl
Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

View Comments

  • Fabíola, me identifico com grande parte dessa carta! Já passei por essa experiência, e não me arrependi se quer um tantinho!

  • Arrancando lágrimas de um Enfermeiro logo de manhã, Fabíola? Não vale! Admiro muito essa postura sua, entendo bem do que se trata, pois compartilhamos desse sentimento, me apego às suas palavras pra essa afirmação. Estou torcendo para que você consiga. Lembra da mensagem de meses atrás sobre o "cuidar de si"? Vejo uma pessoa batalhadora que consegue entender o grande segredo da vida. Admiro suas palavras, muitíssimo obrigado por compartilhá-la conosco. Sou grato. Um abraço, Edson (https://www.facebook.com/nursedson)

  • Nossa Fabíola q bela carta. Ainda q vc não tenha enviado, valeu para seus leitores. Confesso q fiquei muito emocionada, principalmente com o trecho: passar muito tempo longe do filho, não curtí-lo como gostaria e ainda ouvir sua voz por telefone. Nossa isso é realmente complicado, tenho 2 filhos e sei como isso dói. Mais uma vez, valeu pela carta, q de alguma forma serviu como reflexão e como vc costuma escrever "presta atenção"! É um presta atenção na vida, na forma como a gente investe o nosso tempo e com quem. Abs Juliana

  • Olá Fabiola,bom dia!Como colega sua de prefeitura,também entendo seus sentimentos e estamos na mesma fase.Minha decisão já foi tomada,só estou aguardando mais algumas burocracias para finalmente seguir meus sonhos. Desejo muita sorte e que seus planos possam ser concretizados.Um abraço.

  • Boa tarde Fabíola! Me identifiquei muito com suas belas palavras! Há pouco mais de uma semana acompanho suas postagens no face e agora não consigo ficar um só dia sem visitar sua página! Você tem um dom especial, uma enorme sensibilidade e uma alma doce! Assim como você, também tenho um pequenino que é tudo em minha vida, o meu sol,minha maior alegria e nós como mães,sabemos melhor que ninguém que os melhores e mais encantadores momentos de nossa vida são vividos com aqueles que mais amamos! Hoje me considero privilegiada por no momento, apesar de não ter muitos lucros,poder acompanhar mais de perto a evolução de meu filho, sou muito grata a Deus por isso. Já no próximo ano, provavelmente minha carga horária será dobrada, não pela minha vontade, então tenho procurado curtir ao máximo esse momento e também não excluo mais a possibilidade de repensar minha carreira,minhas prioridades, pois também cheguei às minhas quarenta primaveras! É um momento de introspecção, de reflexão sobre tudo o que temos feito em nossas vidas e começamos a saber dar o devido peso às coisas, a valorizar cada pequeno grande instante mágico! Então suas palavras e sentimentos se aproximam dos meus, assim como os seus anseios. Mesmo sem conhecê-la, sinto como a tua alma é transparente e como emana coisas boas, são pessoas assim que fazem nosso dia mais leve! Um grande beijo em seu coração! <3

  • Oi Edson! Que bom que a gente já é amigo por trás da tela, né! Me identifico muito com vc, pelo seu jeito de comentar, tão verdadeiro e aberto à poesia da vida. Lembro sim, da msg de "cuidar de si", preciso ficar atenta! rs... Te enviei uma msg pelo seu face, não sei se vc conseguirá acessar, estará numa pasta à parte... Obrigada mais uma vez por retornar e comentar com tanta doçura e apoio. Bjs!!!

  • Sim Juliana! Vc tb está me lembrando desses "presta atenção" que a vida dá na gente. Desde muito pequena percebo isso, que a vida tem que ser sugada ao lado de quem a gente ama, e embora adore meu trabalho, amo minha família acima dele... Que bom que se identificou, ainda mais por ser mãe de dois! Bjo grande e obrigada!!!

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