Não, essa não é uma carta densa, apesar do título fazer alusão ao livro de Kafka, que você deve conhecer. Confesso que não lembrava mais dele; e só agora, ao trabalhar as idéias, me veio a recordação do livro que não li, mas cujo teor conheço em parte.
Acredito que para um pai sempre permanecerá a sensação de que foi o ator coadjuvante, o parceiro invisível de nossas mães, a presença acolhida sempre como segunda opção. Mas não se ressinta dessa posição, só assim aprendemos a importância do trabalho nos bastidores, das mãos que ajudam sem fazer alarde, do amor generoso mesmo não escancarado.
Crescemos como observadores de sua presença. E embora percebêssemos (os filhos sempre percebem mais do que queremos revelar) o peso que sua profissão representava dentro de suas prioridades, fomos lhe descobrindo aos poucos _ mais pelo que queríamos desvendar em você, do que pelas coisas que era capaz de nos mostrar.
Assim, revirando os baús de minha mãe, lhe descobri mais sensível do que supunha, revelado nas letras e poemas dedicados a ela, em momentos que lhes eram especiais. No silêncio do quarto ela me contava suas histórias, enredos que conheci através de uma narrativa detalhada, nem sempre fiel aos fatos, mas claramente defensora do amor de vocês.
Sua caligrafia miúda, até hoje semelhante a formiguinhas em fileira, me ensinou o gosto pela escrita, a única capaz de desnudar e expôr espíritos introspectivos como os nossos. Sim pai, reconheço nossas semelhanças… Portanto, aqueles livrinhos datilografados ou escritos em letra cursiva caprichosa, cheios de ilustrações e separados por papel manteiga que a mamãe guardava com tanto cuidado, foram meus primeiros livros. Literatura escrita por você numa época em que eu nem havia nascido. E me inspirava também, ao imaginá-lo surpreendendo, elaborando frases tão complexas para minha infância, dedicando tanto de si. Esse foi meu jeito de conhecer o homem atarefado que habitava nossa casa.
Também gostava de ouvir seus discos em nossa vitrolinha vermelha, lembra dela? Eu ouvia Vinícius, Chico, Sá & Guarabira, Os Pholhas e Abba; entre tantos outros sucessos da década de setenta.
E até hoje lembro seus momentos de descontração, toalha de banho na cintura, imitando Ney Matogrosso, enquanto na minha imaginação eu podia jurar que vocês dois eram parecidos… (Desculpa pai, essa foi pra descontrair!).
Apesar das horas difíceis, também tivemos momentos bons. E hoje consigo entender porque. Nesses momentos você estava lá. Verdadeiramente. Não só pela presença física, mas com cabeça, olhos e coração voltados para o momento presente. Nos olhando nos olhos. Gostando de participar. Desejando fazer parte. Como nas comemorações do Natal em que se vestia de Papai Noel. Um Papai Noel magro, de pescoço fino, pele morena e sorriso conhecido. Um Papai Noel tão meu.
Dos livrinhos escritos por você, fui alcançando outros em nossa estante cheia de volumes com os mais variados títulos. Assim, entre placas com seu nome gravado ( você era paraninfo de todas as turmas de medicina!), conheci Rubem Alves, Milan Kundera, J.D Salinger, Anton Tchekhov, Tolstói. E você sabe, algumas coisas não mudam, até hoje nossos assuntos giram em torno dos livros _ talvez seja essa a raiz de nosso vínculo.
Através de seus alunos descobri o homem por trás do pai. Talvez você oferecesse a eles algo que não podia revelar em casa _ sua disponibilidade, leveza e liberdade. Ao ser confrontado com as exigências de uma família _ educação, disciplina e direcionamento de nosso caráter _ talvez tenha percebido que não poderia correr o risco de expôr suas vulnerabilidades. Mas sabe pai, hoje sei que o que torna um homem forte é justamente ter a coragem de se mostrar vulnerável. De confiar. De oferecer a si mesmo, inteiro, àqueles que ama. Com seus alunos você foi um cara mais generoso. E isso nos espantava também. Porque seus alunos o idolatravam. Você era o cara. E lá em casa você ocultava esse homem tão bacana e disponível.
Hoje a maturidade me trouxe um entendimento maior acerca do mundo e das pessoas. E assim consigo compreendê-lo melhor. Mais do que isso, consigo aceitar e concordar com a busca por um caminho de maior autenticidade. Você precisava de uma vida em que pudesse olhar-nos nos olhos, e acho que conseguiu.
O pai que só de vez em quando estava presente, agora me liga no meio da manhã para falar sobre os livros que está lendo, para me contar que leu minha última crônica e por isso baixou “O andar do bêbado”, de Leonard Mlodinow, no computador. Me conta que está fazendo fisioterapia, diz que o problema de hérnias é genético e aproveita para me orientar a comprar meias compressivas, pois nossa família tem tendência a varizes…
Sabe pai, nem sempre os caminhos que buscamos vão agradar a todos. Algumas vezes ferimos quem amamos ao decidir encontrar o que nos realiza; mas eu já disse outras vezes e repito: quando tudo parecer difícil e errado do lado de fora, escolha somente fazer-se bem. É isso que eu sei que você está fazendo, e só isso já me deixa mais em paz também.
Pra finalizar, uma frase que li no livro “O animal agonizante”, de Phillip Roth e que agora divido com você: “Os pais desempenham um papel lendário na cabeça dos filhos”. É por isso que, embora você fosse o terceiro ou quarto braço lá em casa, ainda assim, era uma lenda para cada um de nós, seus filhos. Uma lenda que aumentávamos e diminuíamos de acordo com nossas expectativas e anseios tão infantis. Pra mim você era indecifrável, uma espécie de zorro misterioso, cheio de fases. Queria tirar-lhe a máscara dos olhos e acho que hoje consegui. Cresci, amadurecemos juntos, e enfim consigo enxergá-lo mais humano e menos herói.
Hoje consigo revelá-lo além das aparências, seguindo seu próprio conselho. O conselho de um homem cujas palavras numa dedicatória antiga, já revelavam que podia ser muito mais do que meus sentidos podiam alcançar.
Reproduzo aqui suas palavras ( no livro“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley):
Que bom seria se pudéssemos usar uma carapaça que nos tornasse invisíveis, capazes de sondar o interior das coisas e das pessoas. Provavelmente descobriríamos o que há muito já se sabe. Que somos uma mistura de coisas opostas tais como “bem” e “mal” e que somos ás vezes um pouco o que desejamos aflorar, outras somos o que querem ver. Ou seja, as circunstâncias ás vezes nos revelam por um lado, outras por outro. Mas repetir esses dados pra quê? Lulu já disse tão sonoramente: “Não existiria som se não houvesse o silêncio. Não haveria luz se não fosse a escuridão. A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim…” Desejo, mesmo assim, que você encontre a sua carapaça mágica que lhe ajude cada vez mais a enxergar as pessoas e que também escreva sobre o que você vê. Um grande beijo do seu pai que lhe ama muito. Feliz Aniversário”
FELIZ DIA DOS PAIS! Da filha que o ama incondicionalmente,
FABÍOLA SIMÕES
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Linda homenagem. Tocante e sensível.
Jaqueline Lima
http://verdemamae.blogspot.com.br/
Obrigada Jaqueline, por visitar e comentar! Grata pelo carinho, Fabíola
Maravilhosa postagem!
Emocionante e verdadeiro! Adoro seus textos.
Thank you for the information you have provided, the article you write very well.
Olá Fabíola, aprecio sua sensibilidade e habilidade com as letras. Parabéns pelo talento!
Alex Gil
Que coisa linda! Que lembrança maravilhosa!
Encantada! ❤
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Encantada! ❤
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Estou fascinada com seus textos! Não sou muito de comentar em blogs, mas gostaria de dizer que realmente você tem um dom! É possível reconhecer sua alma nas palavras...ou melhor, nas entrelinhas! Abraços e parabéns!