Outro dia, saindo de um consultório odontológico, veio a pergunta: “Mamãe: Na parede do dentista tinha um adesivo escrito “Dentista do Bem”. Quer dizer que existe Dentista do Mal?”

Bom… depois de achar graça no meu rapazinho, expliquei que se tratava da ONG “Dentista do Bem”, e segui meu caminho pensando nos seres complexos que somos, no bem e mal que carregamos, na luz e escuridão que abrigamos.

Pode ser muito tênue a linha que separa o amor do ódio, a gratidão do descaso, a solidariedade do egoísmo, o enaltecimento da inveja. Carregamos bem e mal, mel e fel, lobo e cordeiro. Somos bombeiros e incendiários_ muitas vezes causando incêndios dentro de nós mesmos.

Tem uma frase linda, do Paulo Leminski que diz: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”…

Talvez_ mais do que simplesmente usar o livre arbítrio para fazer as escolhas certas_ seja fundamental descobrir quem se é de verdade, com todo o céu e inferno que lhe compõe, com todas dificuldades e limitações, desejos e proteções, cárceres e vôos livres; tentando juntar os pedaços e aceitando as imperfeições, conhecendo aquilo que as circunstâncias não revelam, mas coexistem em nós.

Dentro de mim vivem dois lobos. Me esforço para alimentar o bom lobo e matar de fome o lobo mau, mas nem sempre consigo. Tenho defeitos, dívidas, rachaduras. Sinto raiva, inveja, sou intolerante ao extremo. Mas isso não me torna exatamente má.

Nem sempre afloramos aquilo que realmente somos. Afloramos o que desejamos, o que as circunstâncias determinam; igualmente somos vistos como projeções daquilo que desejam ver. O engraçado é que ás vezes acreditamos nos papéis que representamos. Só lá na frente, conhecedores de nosso mistério e frequentadores de anos de divã, percebemos que não éramos tão medrosos, tímidos, culpados, ou mesmo tão apaixonantes.

É impressionante a quantidade de culpa que acumulamos. E como somos capazes de nos punir, boicotando a própria felicidade em nome dessa culpa.

É mais fácil escolher ser o bombeiro, e apontar o dedo para o incendiário_ aquele que mata, fere, queima.

Esquecemos que tanto um quanto o outro estão perto do fogo.Os mesmos olhos que têm piedade, são capazes de julgar; o mesmo coração que ama, destrói relacionamentos com ciúmes; a mesma consciência que perdoa, não aceita o diferente. “A mesma mão que acaricia, fere e sai furtiva”, como em “Flores do Mal”.

Como peças de xadrez, temos possibilidades, movimentos, chances, xeques. Mas tudo são escolhas_ aquilo que se denomina “Livre Arbítrio”. Só através dele crescemos, aprimoramos, nos tornamos pessoas melhores. De nada adianta um uniforme de soldado de chumbo ou princesa imaculada se você não faz escolhas que favorecem o maior número de pessoas. Se não consegue ser gentil consigo mesmo, se não aceita o que lhe é posto no caminho, se não mergulha bem fundo no seu mistério e se pergunta o que lhe assusta tanto. Descubra-se pelo menos uma vez na vida, não tenha medo do que irá encontrar lá no fundo. Não somos cem por cento belos, nossa casca não é feita de verniz, nosso interior abriga mais frustrações do que podemos supôr. Mas nem por isso precisamos classificar. Pois o bonito da vida é perceber que somos feitos de silêncios e sons, e entender, além disso tudo, o quanto somos amados _ e quanto ainda somos capazes de amar…

Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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