É preciso falar de desapego e aceitação

Título Original: “Água que flui, água que cai…”

Já falei aqui do livro “O arroz de Palma”, de Francisco Azevedo. O livro me fisgou, e continuo relembrando suas passagens. Como aquela, que conta a mania do menino de colocar a língua no buraquinho deixado pela perda do dente de leite. Já idoso e com muitas outras ausências, o narrador conta:  “Com tanto céu da boca, a ponta da língua só quer ir para o buraco que ficou. A língua sente falta do dente. Sempre acostumada com ele e, de repente, a ausência. Agora… entendo a língua. Com tanto céu na vida, só quero ir para o vazio que ficou…”

Daí que relembrei histórias antigas, do tempo em que eu e meu irmãos éramos meninos, e em nossa casa havia um mantra_ “Seja tudo pelo amor de Deus…”_ recitado exaustivamente por mamãe naquelas situações em que a louça espatifava; o leite derramava; ou mesmo quando nossos uniformes limpinhos se enchiam de feijão na hora de ir pra a escola. Era tão comum_ e frequente_ ouvi-la repetindo a frase, que acabou virando substantivo. Meu irmão caçula vira e mexe gritava: “Mamaaaaaãe… Acabou de acontecer um ‘Seja tudo pelo amor de Deus’…!” e era um tal de correr com as vassouras, panos de prato, roupas limpinhas…e dar conta do que sobrou.

Todo mundo sabe que não adianta “chorar sobre o leite derramado”, e que “vão-se os anéis, mas ficam-se os dedos…”, mas mesmo assim não é simples aceitar que coisas, pessoas, relacionamentos, histórias, lugares, momentos…ou o que quer que seja, se vá. A gente teima em se fixar no que passou, no buraco que ficou, no vazio que deixou, na parte de nós que ainda está naquele lugar que não existe mais. Tanta louça brilhando na cristaleira e só queremos juntar os cacos daquela que espatifou.

A vida é água que flui; pode levar aquilo que amamos e trazer o que não desejamos. Aquilo que permanece, nos cabe.
Já virou lugar-comum falar de desapego e aceitação. Mas no fundo é isso que nos ajuda a crescer. Não é ganhando bem, tendo filhos saudáveis, adquirindo bens, viajando o mundo inteiro… que evoluímos. Ao contrário, é durante os revezes que nosso espírito se fortalece. É quando aprendemos a viajar com menos bagagem, menos peso, que percebemos que nossas dores são consequências de nosso apego, da dificuldade de viver o presente, dos arrependimentos, traumas, dívidas.

Vinícius de Moraes poetizava: “Foi então, que da minha infinita tristeza, aconteceu você…”. E descobrimos que é assim que o mundo gira, os rios seguem, os ventos levam, as brisas trazem. De vez em quando é difícil dizer “Seja tudo pelo amor de Deus” e seguir em frente com o amor desfeito, a saudade do lar, a tristeza pela perda de alguém, decepções, frustrações, abatimento.

Mas o universo é sábio e como na natureza, vivemos em harmonia com as leis da ação e reação. Há o tempo do plantio, da irrigação, das secas, da fome e da colheita. Os cabelos caem no inverno e ficam abundantes no verão. As folhas caem no outono e florescem na primavera. E de sua infinita tristeza, podem acontecer recomeços, novas chances…

Pois é na infinita tristeza que aprendemos a reconhecer o amor, a estreitar os laços, a valorizar os momentos, a utilizar os dons e talentos. A entender enfim o mantra:
“Água que flui, água que cai. O que deve ficar, fica. O que deve seguir, vai…”

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Fabíola Simões

Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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